12 outubro 2011

Será que dá pra lavar geléia?

Quem me conhece sabe que eu sou de dormir tarde. E às vezes, momentos antes de ir pra cama, já de madrugada, bate aquela fominha, aquele buraco no estômago. Nestes momentos como qualquer coisa, o que estiver mais fácil, que não dê trabalho e que não atrapalhe o sono. Como de pé na cozinha, na bancada, na beirada da pia. É rápido: uma maçã ou um iogurte, às vezes um nescau quente com alguma bolacha. Dia desses eu tinha dois biscoitos sabor limão e um resto de geléia de pêssego que não chegava a encher uma colherinha de café. Era perfeito: meia colheradinha pra cada biscoito. Mas a geléia é escorregadia. O biscoito era fininho. E eu já sonolenta coloquei a geléia de qualquer jeito em cima do primeiro biscoitinho. Ela deslizou e pum, caiu dentro da pia da cozinha, que infelizmente não estava vazia, mas cheia de panelas e pratos. Eu não podia acreditar. Fiquei olhando pra ela e lamentando alto, com aquele chorinho que a gente faz sem chorar. No pote de geléia restava agora menos de meia colherinha de café, só dava pra um dos dois biscoitinhos de limão, que casam perfeitamente com o sabor leve do pêssego. Tinha doce de leite também na geladeira, mas antes de partir pra outro sabor bem diferente, voltei a olhar pra dentro da pia e me perguntei: será que dá pra lavar geléia?
Sei que pra cada pessoa é diferente, mas pra mim sempre foi muito difícil romper com aqueles padrões de comportamento ou condicionamentos que estão mais grudados na gente, colados na pele, tanto que normalmente a gente nem consegue enxergá-los direito. Me refiro a bobagens como, por exemplo, tomar a cerveja toda, mesmo que esteja quente, e a uma infinidade de outros pequenos e perversos condicionamentos diários, de que nem consigo me lembrar direito. Nos últimos anos tenho estado mais atenta a isso, e essa atenção tem me mostrado o quanto é difícil ser livre. Não apenas libertar-nos de repressores ou censores externos, mas perceber o quanto nos censuramos e reprimimos cotidianamente, nos atos mais impensados, nas coisas mais ínfimas, nos automatismos constantes. Condicionamentos e padrões são correntes invisíveis que a gente carrega pra todos os lados. Mesmo nus permanecemos com algum tipo de roupagem, de atadura. E ela se confunde com a pele, se mimetiza, é um hospedeiro nocivo e silencioso. Sinto que é preciso lutar também contra a prisão que isso representa. É difícil. É árduo. Mas ir se libertando aos poucos desses condicionamentos vai deixando a gente mais solto, menos mecânico, mais criativo e aberto a novas possibilidades. Pode ser útil em alguns momentos, pode ser divertido, pode ser ridículo ou bizarro, mas pode ser muito interessante tomar a contramão do pensamento, pensar fora dos trilhos, ver aquilo de sempre de um modo tão diferente.
Uma vez soltei um peido na seção de perfumes de um freeshop (ia dizer um pum, que fica mais delicado, mas aquilo não foi um pum, foi um peido mesmo). Não fez barulho. Mas subiu como uma alma podre vinda dos quintos dos infernos. Existe lugar mais apropriado pra soltar um peido bem fedorento? Pense: está todo mundo de férias, relaxado, pesquisando odores, aspirando, cheirando, escolhendo entre Calvin Klein, Dior, Chanel e Yves Saint Laurent, olfato aguçado, narinas abertas, atentas às pequenas sutilezas. Tive de ser uma grande atriz naquele momento. Saí de perto enquanto ainda não se sentia o intruso, mas não fui muito longe, apenas alguns metros, pra observar a reação dos outros compradores. Continuei experimentando perfumes (era uma seção enorme e super variada) enquanto a carniça tomava conta do ambiente (estava há três dias sem ir ao banheiro, coisas de viagem) e precisei de muito autocontrole pra não explodir na risada, coisa que fiz cinco minutos depois, na seção ao lado. E coisa que faço cada vez que me lembro da cara de um homem que foi levantando aos poucos a cabeça sem conseguir acreditar no que estava acontecendo e tentando imaginar quem poderia ser o autor de algo tão desaforado e virulento: nunca uma moça jovem, branca, bem vestida, magra e lívida como eu naquele momento. Devo confessar que foi irresistível, a ocasião perfeita, um convite. E ter me permitido algo tão vil foi impagável. Uma manifestação de rebeldia, quase um atentado: contra o consumismo, contra os grã-finos, os importados, os desodorizantes de ambientes e o papel-higiênico perfumado. Pequena vingança. Ridícula até. Mas ser livre é um processo lento e longo, e provavelmente nunca acabe.
Releio o último parágrafo e sinto vergonha de publicá-lo. Penso em outro modo de contar o fato, sem perder a classe. Relaxo, sigo em frente. A vergonha é mais uma daquelas correntes, mais um esparadrapo na boca da gente. Lembro agora da história, que não posso deixar de contar, de um músico baiano louco e brilhante que, indo pela enésima vez cobrar por um trabalho já terminado, quando lhe disseram que ainda não tinha saído o pagamento começou a latir como um cão danado. Nem preciso contar que o cheque apareceu naquele mesmo instante.
Quanto à geléia: sim, enxaguei-a em água corrente, coloquei em cima do biscoito e abocanhei-o rapidamente, rindo e me sentindo um pouquinho menos prisioneira de hábitos e padrões de pensamento.

09 outubro 2011

Uma flor sem adjetivo


Meu vizinho do apartamento de cima viajou para a Alemanha por uns tempos. Antes que se mudasse, subi um dia e me ofereci para cuidar as plantas que tivesse, para comprar sua geladeira ou algum móvel de que ele precisasse se desfazer. Dias depois encontrei do lado de fora da porta de entrada, alinhados junto à parede do hall, três vasos de plástico. O maior deles tinha uma planta mirrada, de folhas compridas e carnudas, sem graça e maltratada, e, em volta dela, uns pezinhos de erva daninha que nasce sem ser convidada em qualquer terra. Em outro vaso, quase de mesmo tamanho e forma, havia apenas terra ressecada e cinzenta. O último era pequeno e com uma pequena planta dentro, de folhas miúdas e gordas, que resistiu à falta de água e alimento. Ri surpreendida com aquele quadro desolador e árido, bem diferente do que eu tinha imaginado. Duvidei entre jogar no lixo ou entrar as plantas e aproveitar talvez a terra ou os vasos para enfeitar, com mudas novas, o belo balcão que tem do lado de fora da grande janela de vidro da minha sala. Coloquei-as ali, junto à Aloe Vera enorme e selvagem que herdei da antiga moradora da casa, e comecei a molhar tudo de vez em quando na esperança de que se recuperassem ou que da terra brotasse algo vindo de alguma raiz oculta mas ainda viva. Com a proximidade da primavera e os primeiros dias de calor, novas folhas carnudas brotaram nos dois vasos, sem que isso mudasse significativamente o cenário desagradável. Ontem pela manhã, no entanto, assim que saí do quarto, os olhos apertados ainda pelo contraste com a claridade da sala, chamou minha atenção uma luz estranha em meio ao verde das ramas do jasmim do prédio que se enroscam na grade do balcão: um ponto rosa estridente dentro do pequeno vaso. Disse estridente por não encontrar palavra mais adequada para descrever aquele efeito que causavam certas estampas ou listras em televisão de antigamente, em que se perdiam os contornos e as cores vibravam, incomodando os olhos da gente. Esperei que a vista se acostumasse à luminosidade e então me aproximei intrigada. Entre as folhinhas gordas da planta pequena, sim, uma flor mínima, em forma de espanador, de um centímetro apenas de diâmetro, pétalas finas e abundantes. Uma estridência apenas, uma surpresa, um grito no meio do verde nada, uma flor quase sem adjetivos, mas de repente um adjetivo na minha sala.



30 setembro 2011

Sem poesia

Tem dias que o mundo em volta é duro feito concreto.
Que a calçada é um conjunto organizado e retilíneo de pedras.
Que um poste é só um poste, jamais a lembrança de Gene Kelly.
Que a chuva não vem e não há cheiro de terra molhada que possa, a modo de Proust, trazer de volta a infância no jardim da primeira casa.
Tem dias que a comida é compulsão e a bebida é companhia.
Acordar é enfadonho e voltar a dormir, uma saída.
Tem dias que todas as palavras estão vazias, e que a gente se exaspera por poder dizer somente o que a linguagem, sozinha, diria.
Em dias assim, sem poesia, a pele está dormente, doente, o olhar não brilha; escorrega sobre as coisas sem gozo, seco, morto, indiferente.
Queria hibernar como um urso, afundar como uma baleia, encolher as asas até caber de  novo no casulo, e lá dentro chorar e sorrir até renascer da seda.

16 junho 2011

A história no instante

Há uma cena inquietante –para mim talvez a mais inquietante de todo o filme– em O Curioso Caso de Benjamin Button: quando ele narra o atropelamento de sua amada, Daisy, como uma sucessão de instantes amarrados entre si como as jogadas em um jogo de xadrez.  Quem nunca viveu isso? Qualquer movimento diferente no meio daquela sequência de eventos teria evitado o acidente e a consequente ruína da carreira de bailarina da personagem. Ontem à noite passei por algo parecido numa rua de Córdoba, no centro da cidade, quando dobrei numa esquina e reconheci um desconhecido. Sim, você também já deve ter passado por isto: aquele instante em que você está certo de conhecer alguém, de já ter visto aquele rosto, sem que nunca antes o tenha visto. Mas o curioso do encontro de ontem foi que aquele homem também me viu, me reconheceu e ficou tão atordoado quanto eu.
Enquanto eu dobrava a esquina, ele, dentro de uma loja, levantava do chão uma caixa. Eu pisava com passo firme na calçada, determinada a chegar em outra loja, dois quarteirões mais adiante, antes de que fechassem. Ele empurrava a porta de vidro com o corpo, as mãos ocupadas carregando a caixa, eu já estava tão perto... Ele atravessou a calçada bem no ponto em que eu pisaria segundos depois, já desconcertada pela troca de olhares, pelo reconhecimento mútuo. Mas isto já seria na segunda troca de olhares. Na primeira e involuntária, antes de cruzar a linha invisível que ele tinha desenhado na calçada, eu tinha apenas levantado o olhar do chão, casualmente, e colocado sobre aquele homem ali parado, já no asfalto, se preparando para colocar a caixa no porta-malas do carro. Homem alto, moreno, do jeito que eu gosto, ator de cinema, acho, mas o que ele faz em Córdoba? E antes de que no instante seguinte eu desviasse outra vez os olhos e os pousasse de novo no chão à minha frente, ele levantou os dele da caixa e colocou-os nos meus. Deixou que permanecessem assim mais tempo do que o faria alguém que não se interessasse por mim ou que não me reconhecesse. Não era ator cordobês, eu não conhecia muitos, nem ator argentino, que conheço mais. Não era alguém famoso que eu reconhecia na rua, mas alguém que eu conhecia sem conhecer ainda. Tirei os olhos dos dele (para onde depois eu voltaria ainda várias vezes), pisei firmemente com o pé esquerdo no chão, depois com o direito e entrei de novo na linha reta da calçada que me levava à loja que em poucos minutos fecharia as portas.
Se alguém tivesse esbarrado em mim na esquina, se o semáforo da rua anterior estivesse aberto e atravessar a rua a pé tivesse me custado mais alguns minutos, talvez ao passar por ali ele já estivesse com a cabeça enfiada no porta-malas do carro. Se a porta de vidro da loja de onde ele saía estivesse com ferrolho ou chave e ele com as mãos ocupadas demorasse um instante em abri-la, talvez eu passasse sem tirar os olhos da calçada. Uma sequência amarrada de eventos para desembocar em um instante. Gosto do cinema, da música, da literatura, do teatro e da dança que se detêm nesses instantes.
Algumas semanas atrás toquei carinhosamente com a mão o rosto de um amigo já depois de despedi-lo com um beijo e um longo abraço. Era para mim o último instante de um longo encontro de muitas horas de conversas e descobertas. Era um souvenir só meu, um toque de peles que eu roubava silenciosamente daquele amigo. Dias depois descobri, que do outro lado do mundo, naquele mesmo instante, na cabeça dele, na pele, no sentimento, aquele carinho tinha se dilatado, aquele gesto curto do dedo deslizando sobre a pele da face tinha sido eterno.
Gosto do cinema, da literatura, da música, da dança, do teatro, da fotografia que tratam não tanto da história  prévia destes instantes, como em O Curioso Caso de Benjamin Button, mas das histórias nestes instantes, de tudo –e não é pouco!– o que acontece ali dentro.

08 maio 2011

Amor pelas cidades

Avenida Hipólito Yrigoyen, Córdoba, Argentina.

Quando eu era ainda bem pequena, meu sonho era morar um ano em cada cidade do mundo. Não lembro quantos anos eu tinha, mas não devia ser muito, pra eu achar que dava pra conhecer o mundo todo no decorrer de uma vida. Somente mais tarde vieram os sonhos “possíveis”: ser cantora famosa como Gal Costa, ser aeromoça, ser freira, ser puta. Estes todos e outros igualmente representativos do amadurecimento conflituoso de toda menina, desapareceram com o tempo. O outro, no entanto, aquele primeiro e impossível, permaneceu. Era sonho de criança, e no mundo do faz-de-conta, onde tudo é possível, vou cumprindo de certa forma meu pequeno e incomensurável projeto de vida. Já morei em algumas cidades e ainda tenho alguns anos pela frente. Se pensarmos em termos de porcentagem é evidente que vou ficar me devendo, mas pensemos diferente, buscando daquele sonho o cerne, o latejamento: o impulso de viver muitas vidas numa só, a necessidade de explorar diferentes realidades ao redor do planeta, e, principalmente, o amor pelas cidades.
Nunca entendi porque em Salvador, cidade onde nasci, mas não apenas ali, as pessoas cospem e escarram nas ruas, sem qualquer sinal de constrangimento, e, suspeito, inclusive, que com certa dose de orgulho. Estou certa de que há alguma explicação histórica, sociológica ou antropológica para este gesto, possivelmente oriundo das relações de poder e dominação nos territórios ocupados por colonizadores europeus. Li por aí que também na China, do outro lado do planeta, é costume escarrar nas ruas, e ainda que este  hábito teria sido sinal de refinamento na alta sociedade do Brasil do Século XIX., daí as finas escarradeiras e cuspideira de prata, porcelana e vidro. Estas explicações, no entanto, não bastam para fazer cessar o meu espanto e enfado. Não consigo deixar de ver aí o desprezo pelo lugar em que se habita (e talvez seja isto, exatamente, o que há para ser visto).
No desconhecimento das razões deste desprezo pela coisa pública (a rua, a calçada, o poste de luz, onde o baiano deposita seus excrementos), sempre pensei ser a reação a um outro tipo de desprezo que vem em sentido contrário: o dos governantes, desde os tempos da colônia, pelos habitantes da cidade. Salvador, como tantas outras cidades coloniais importantes, não foi feita para o escravo, para o pobre ou para o pedestre, mas para o mandatário, o motorizado, o detentor do poder econômico. As calçadas são estreitas e perigosas, as vias de alta velocidade, as praças e áreas de lazer escassas e abandonadas. Quem cospe na rua, escarra na calçada, faz xixi nas esquinas, assoa o nariz e limpa a mão de meleca no primeiro poste de luz que encontra, sobre o qual outro baiano vai se apoiar alguns segundos ou minutos depois, está talvez perpetuando um gesto de desprezo por outro desprezo muito maior, anterior e mais grave. Esta é apenas outra justificativa possível, mas em todo caso, justificável ou não, o resultado de tudo isso não é nada agradável. O desprezo é uma marca na cidade, com o que temos de conviver e do que temos de esquivar sempre para que não nos atinja, literalmente.
Não estou em Salvador agora, mas em Córdoba, no interior da Argentina. Aqui, como na maioria das cidades argentinas, as calçadas são largas, as praças amplas e generosas, com muitos bancos e muita sombra, sinal, provavelmente, de uma sociedade que foi e ainda é um pouco mais justa. Aqui vou à forra e caminho quilômetros por dia. O espaço público é ainda uma extensão da casa, lugar de estar, de conviver, de compartilhar. A violência, que aqui também cresce, e com ela o desprezo, vai mudando aos poucos este cenário. Mas eu ando feliz aqui, ainda, exercitando a cada passo meu amor pelas cidades, vivendo um pouco mais meu sonho bobo de menina.


23 abril 2011

Sobre pensamentos dolorosos

Não adianta. Sempre vou precisar escrever sobre este assunto. Ainda que escrever seja não fazer nada.
Uma das coisas que a gente aprende logo, quando começa a trabalhar em empresas, é que não se deve começar um texto com uma negativa. Teme-se que toda a leitura que vem a seguir fique tingida por um tom sombrio ou pessimista. Você dificilmente vai ver um texto jornalístico ou uma comunicação empresarial iniciar por um não, um nunca ou um nada. E é assim que eu quero começar este. Não para favorecer um clima pessimista ou negativo, mas para estimular um comportamento contrário, na contramão, a contrapelo.
Não. Não é um assunto agradável, nem confortável. É, ao contrário, um assunto que a gente evita, como começar um texto com uma negativa. Me refiro àquela parte da realidade que a gente vai apagando até ficar quase invisível. Àquela parte da realidade que a gente escorrega os olhos por cima pra não ver, aquela de que a gente desvia quando vem ao nosso encontro. Tem quem não queira ver porque é feio, porque dá medo ou porque dá nojo. Tem quem desvie, o olhar ou o corpo, para evitar um pensamento doloroso.
A cidade é o palco desses encontros, especialmente as nossa metrópoles inchadas e injustas, em que a miséria e a violência foram se assentado como parte da paisagem. São encontros cotidianos, ninguém está mais a salvo deles, a não ser que se isole na irrealidade do seu apartamento ou condomínio, e sempre que tenha empregados mudos e bem fardados e esteja bem distante da visão da rua lá embaixo ou lá longe. Quem tem que sair na rua, já nem digo para andar a pé ou pegar um ônibus, mas quem tem que sair nem que seja até o limite do portão de sua casa, está sujeito a estes momentos, estes cruzamentos ou interseções entre a realidade como a gente quer, precisa ou prefere que ela seja, e a realidade como ela se impõe pra gente. As pessoas da minha classe, essa classe indefinida, que não é pobre nem rica, a que se chama inconsistentemente de classe média, vivem cotidianamente desviando, os olhos, o corpo e a mente, desses encontros.
A metrópole é, certamente, e não há como fugir disso, composta por uma superposição de realidades diferentes e até divergentes. O que vemos nas nossas metrópoles, em que grassa a miséria e o desamparo, no entanto, não é uma superposição, que a meu entender implicaria convívio e diversidade, mas a criação coletiva de uma cidade fantasmática ou cenográfica -a modo de Lars Von Trier em sua trilogia americana- em que há zonas de luz em que me movo e grandes áreas de sombra e invisibilidade, em que tudo se vê ao mesmo tempo que fingimos não ver nada. Ali, no breu, na sombra, o que eu não gosto, o que me dá medo ou me dá nojo, o que me gera culpa, aquilo com o que não concordo, o que mancha a minha história de vidinha feliz com começo, meio e fim de conto maravilhoso. A vida é dura: eita clichê horroroso, que serviria muito mais para falar da vida dos outros, esses que a gente joga na sombra, mas que a gente usa sempre para falar das nossas próprias pequenas e miseráveis misérias de classe média.
Mas eu comecei dizendo que escrever era não fazer nada. E é. Esse é um problema que tem solução, mas que depende de ações conjuntas e pelo qual tem -acredito- muita gente fazendo muita coisa. Eu só quero escrever aqui sobre estes pensamentos dolorosos, que me acometem cada vez que cruzo um miserável, cada vez que digo um boa noite cínico ao vigia da minha rua, que vai passar a noite lutando contra o sono dele para cuidar de que o meu sono seja tranquilo e revigorante. Estes pensamentos dolorosos de que a maior parte dos meus amigos desvia imediatamente, os olhos, o corpo, a mente e a alma, e só uma pequena parte permite carregar consigo. Pra dentro da vidinha besta, da vidinha cor-de-rosa, pra despertar a culpa, a raiva, a angústia. Pra dentro de casa, pra dentro do trabalho, pra dentro do pensamento, pra habitar e vestir a gente por dentro, ainda que a vida se torne mais cinza. A estes amigos, conhecidos e desconhecidos, um elogio e minha companhia.

20 abril 2011

Uma casa muito engraçada

Renè Magritte. La Victoire. 1938

Engraçada não é bem a palavra.
Antigamente eu gostava de dizer que era como um caracol, carregando a casa nas costas. Não uso mais essa metáfora. Não é uma casa que vai comigo. São casas que eu construo e vou deixando por onde passo.
Tem uma casa em Sitges, perto de Barcelona, que tem meus móveis: um sofá que herdei dos meus pais e uma estante de loja, de ferro e vidro, por que me apaixonei, ainda que fosse inteiramente inútil aos propósitos de guardar qualquer coisa.
Tem pedaços da minha casa em casas de amigos em São Paulo.
Tem uma casa em Córdoba, na Argentina, que guarda minha casa dentro de caixas, malas e móveis. Está lá minha casa, ali dentro, esperando que eu volte.
Tem uma casa na praia, em Salvador, que tem quadros meus nas paredes. Quadros que ficaram bem naquela casa.
Eu tenho um quarto na casa da minha mãe. Um pequeno quarto pra onde eu sempre volto.
E tenho uma casa onde não moro. Com uma cama que eu mesma escolhi, grande, bonita, cômoda, onde não durmo. Uma cozinha que reformei unindo-a à sala por uma mesa em que não como.
Eu já tenho uma casa no Caribe, uma casa que não sei se vê a água transparente do mar ou se apenas escuta o seu murmúrio. Outra casa que me espera. Pra me habitar.
Uma vez a trabalho, a caminho entre Belo Horizonte e Diamantina, sentei no meio-fio do posto de gasolina, na beira da estrada. Olhei para um lado e para o outro da pista. Ali, no meio do nada, eu sorri, me sentindo em casa.

12 abril 2011

A praça

Sentei sozinha, num banco na sombra, bem no meio da praça. Caminhar pela cidade onde a gente mora é fundamental, mas parar de vez em quando em alguma praça no caminho, é ainda mais importante. Esta é uma praça pequena, mas bem frequentada. Não é cêntrica, é inclusive um pouco afastada e desconhecida da maioria das pessoas, mas começa a ser visitada por gente que vem, como eu, descansar, passar a hora do almoço, do café ou do lanche, conversar, ler ou encontrar amigos distantes (no caso, esta amiga que vos fala).

Tenho vindo com frequência, me acostumei a parar por aqui de vez em quando. 

Quase toda praça fica num cruzamento entre ruas e avenidas. É como um ponto final em uma longa frase ou como uma vírgula que propõe uma pausa, uma inflexão, um respiro, um descanso. Toda praça é um descanso: pro corpo, pra alma, pros olhos, pro tempo e principalmente, pra pressa. Essa pressa que a gente acha que tem, mas que é ela, quase sempre, que tem a gente.

Há um homem nessa praça que olha pra mim, não sei dizer ao certo se nos conhecemos. Deve ficar tentando adivinhar se estou escrevendo ou desenhando, e talvez se perguntando se ele faz parte do desenho. Ao meu redor há ainda outras pessoas que vêm de lugares diferentes, com histórias diferentes, se sentar nessa praça. Tem gente que apenas passa, não pára nem senta, atravessa depressa, andando ou correndo. Mas no geral, quem corre aqui são os cachorros e as crianças, e não o tempo. Quando a gente se senta ele parece que pára e se enrosca e circunda a gente. Fica tudo imerso num tempo envolvente, atrás, na frente, em cima, embaixo.

Uma cidade sem praças é uma cidade sem pausas. 

Escrever um blog é como criar uma praça. E não falo apenas deste, mas de um sem fim de blogs que tenho encontrado e que, como o meu, não querem ser avenidas, nem ruas, nem túneis, nem pontes, nem viadutos. Se este blog pudesse ser alguma coisa, acho que ia gostar de ser esta pausa. Pra fazer o tempo esperar pela gente.

07 abril 2011

Café requentado

Pra quem acredita no Grande Amor, em Amor Eterno ou em outros amores com maiúsculas, este post vai parecer ridículo. Talvez ele seja ridículo de qualquer maneira, escrever sobre o amor é sempre meio suspeito e quase sempre piegas (exceção feita à literatura ou à música que podem falar dele sem receio). Mas se você, como eu, tem o “amor disperso” (a expressão é da poetisa cubana Dulce María Loynaz) talvez você se identifique com alguma das bobagens que vou dizer a respeito. Na verdade, este post é quase um conselho (adoro quebrar minhas próprias regras). Pra quem? Não sei, veja aí se ele serve.
Pra quem amou muitas vezes, fica uma sensação de que a gente nunca deixa de amar alguém completamente. Podem passar muitos anos e provavelmente em muitos casos, ao reencontrar uma pessoa a quem se amou loucamente, a gente até pense – aliviado – “que bom que não estamos mais juntos”, ou ainda mais distanciadamente, “como pude amar essa pessoa?”. Mas se ao reencontrar esse amor antigo, você ficar perto dele por um tempo, compartilhando um mesmo espaço, um mesmo trabalho ou qualquer outro tipo de atividade, provavelmente você estará correndo um sério risco de se apaixonar de novo. Encontrar a pessoa amada sempre desperta algo do encantamento ou da afinidade que existiu antes. Acho que o amor nunca vai embora totalmente. Esse encantamento é como aquela velinha de aniversário, aquela que você apaga e ela acende novamente. E quando essa velinha teimosa ameaça acender de novo, você revive um pouco daquele amor já conhecido. É tentador, curioso, perigosamente atraente.
Tiro o chapéu pra quem consegue estabelecer uma amizade, digamos indiferente, com alguém com quem esteve alguma vez ligado amorosamente. Eu tentei quase sempre, e acreditei durante muito tempo nessa possibilidade, até que comecei a perceber que, salvo adoráveis exceções, quase todos os meus ex-companheiros, esses “apenas amigos”, voltavam, de tempos em tempos, a ter contato comigo pra marcar território: coisa de cachorro macho mesmo, fazer xixi nos cantinhos do terreno. Sempre muito dissimuladamente (às vezes nem isso), com cara de conversa desinteressada, mas fazendo as perguntas certas e atualizando os dados. Cheguei a reencontrar intimamente algum desses ex-amados e me deixei levar pelo restinho daquele amor antigo. Fica aqui o veredito: provar outra vez um amor do passado tem sabor de café requentado. Não é como a madalena de Proust, que molhada no chá, relembra vividamente um passado terno e reconfortante. Se o passado de Proust estivesse de fato na frente dele naquele momento, aposto que a experiência não seria tão agradável. O beijo (de) novo, o sexo (de) novo azeda o molho e entorna o caldo. Quem entende de culinária sabe que muitas comidas ficam muito mais saborosas no dia seguinte. Este não é o caso. Quem gosta de café, quem o aprecia realmente, não toma café de ontem, ele tem de ser fresquinho, passado na hora.
Mas é a tal história: se conselho fosse bom ninguém dava e talvez algum dia eu morda ou queime a língua com café requentado. Só posso dizer que, hoje em dia, se eu consigo identificar esses “cachorros” (sem ofensas, por favor, meninos) eu fujo! E se encontro com algum daqueles ex-amores que chamei de “adoráveis exceções”, é curioso como em algum momento uma troca de olhares, uma frase ou aquela piada que só eu e ele entendemos deixa evidente o perigo que estamos correndo. E ambos fugimos.
Como eu disse antes, falar do amor costuma produzir textos bobos e frágeis como este. Termino, então, com o poema de Dulce María Loynaz, pra tentar recuperar um pouco da dignidade perdida:

POEMA IX
Dichoso tú, que no tienes el amor disperso…, que no tienes que correr detrás del corazón vuelto simiente de todos los surcos, corza de todos los valles, ala de todos los vientos.
Dichoso tú, que puedes encerrar tu amor en sólo un nombre, y decir el color de sus ojos, y medir la altura de su frente, y dormir a sus pies como un fiel perro.

01 abril 2011

Instável


Minha avó tinha vertigem quando olhava o céu. Precisava segurar na mão de alguém pra conseguir ver um eclipse, um fiapinho de lua – como diz minha mãe e meu sobrinho repete – ou uma noite cheia de estrelas. Essa história sempre me fez sentir muito perto dela.
Duas notícias, ontem, na página de abertura do meu provedor de Internet, chamaram minha atenção especialmente: uma animação sobre a diferença de gravidade em diferentes lugares do planeta Terra e uma ilustração que mostra as marcas – gigantescas – deixadas por meteoros em Saturno e em Júpiter. Vivemos sobre a casca de um corpo líquido e ardente. Andamos sobre esta casca curva como se fosse plana, como se fosse firme, sólida, e, principalmente, eterna. Planejamos o que vamos fazer na próxima meia hora, no dia seguinte, daqui a seis meses, dez anos, e na nossa velhice. Procuramos estabilidade em todas as instâncias possíveis: no emprego concursado, no casamento pra sempre, na casa própria, na assinatura do jornal, no calendário, na poupança, na previdência. Mas de vez em quando, fumamos um bom baseado, bebemos ou metemos pra dentro alguma química que faça o estável ficar leve ou fortemente abalado. Antídoto pra um veneno que a gente mesmo inventa. Caminhar sobre a casca curva e olhar o céu vertiginoso não deveria ser suficiente? Deve ser que a gente anda cada vez menos na rua e quando o faz, só olha pra frente.
Está bem, eu entendo: a instabilidade permanente pode ser incômoda e certamente não interessa a muita gente, especialmente aos poderosos, que acabam fazendo da estabilidade alheia fonte de poder e riqueza. Mas a noite pode se precipitar sobre a nossa cabeça na forma de um meteoro e há lugares no planeta em que somos mais leves, mais soltos, mais voadores! Isso não conta?
Muitas crianças, quando começam a adquirir maior consciência do mundo à sua volta, desenvolvem um certo pavor da hora de dormir, querem aproveitar cada segundo e muitas vezes só se entregam finalmente ao sono depois de muito choro. Essas mesmas crianças, mais ou menos na mesma idade, procuram, enquanto despertas, lugares altos, saltos, quedas, de verdade ou de mentira, giram, giram e giram, repetidamente, pra sentir o barato da tontura. Impossível não pensar na expressão “carpe diem”, já tão desgastada pela efusão bem-intencionada (nem o inferno aguenta mais!) de powerpoints de auto-ajuda. Prefiro então o que disse Rainer Werner Fassbinder, quando lhe perguntaram porque quase não dormia: dormirei quando estiver morto. Tem que ser meio criança ou meio artista meio louco pra sentir essa vertigem da vida?
Cada vez que eu tive algum desespero ou uma tristeza profunda, me aferrei à consciência de que de nada adianta sofrer se de um segundo para o outro tudo pode desaparecer, sem que sequer tenhamos tempo de ser conscientes disso.
Minha avó sentia vertigem quando olhava o céu. Acho que herdei dela este sentido estranho de instabilidade. Isso me aproximou desta avó que morreu muitos anos antes de que eu nascesse. Essa vertigem, esse gesto de segurar na mão de alguém para enfrentar o desconhecido. Hoje, pensando nos loucos e nas crianças, nos meteoros e nas diferentes forças de gravidade, me pergunto se minha avó, mesmo com medo, não gostava de olhar, sempre que podia, as estrelas em permanente fuga que eu imagino que ela via.

23 março 2011

Bullying, no meu caso.

Palavra da moda pra assunto antigo, todo mundo sabe disso. O bullying é mais velho que andar em pé, ou talvez até mais do que isso. Como agora está na moda, todo mundo tem se pronunciado a respeito: médicos, educadores, jornalistas, pais, alunos, psicólogos, colunistas de todo tipo em todo tipo de midia. Eu, certamente, não tenho muito a acrescentar, exceto talvez pra somar um depoimento aos milhões que andam circulando por aí.
Fui vítima do famoso escárnio (não entendo porque a adoção tão imediata de um termo tão inacessível para os que não são falantes de inglês; talvez pra dar um toque de novidade ou pra circunscrever o assunto a uma classe elitizada), dizia eu, vítima do famoso escárnio quando era ainda bem pequena, lá pela 2ª ou 3ª série do primeiro grau. Teria eu, portanto, 7 ou 8 anos, plena infância ainda, quando um dia uma colega me viu, durante uma aula, tirando meleca com o dedo do nariz e, pior ainda, colocando o dedo com meleca na boca. Não era a primeira vez que eu fazia isso. A meleca é salgadinha, gostosa até. Me refiro, obviamente, àquela meleca molinha, o muco, aquele que as crianças resfriadas lambem dos lábios quando escorre pra boca, não à meleca dura e ressecada com que a gente faz bolotinhas. Não é muito diferente da saliva ou de algum pigarro que a gente engole numa boa e ninguém fala nada nem fica com nojo.
Naquele dia, uma moça de sobrenome fancy (pra ser coerente com bullying), filha do dono de uma das maiores construtoras da época, me viu comendo meleca, virou-se imediatamente pro colega do lado e cochichou com cara de nojo. A notícia se espalhou rapidamente e em pouco tempo eu estava completamente isolada de toda a escola. Não, eu não estou exagerando. Em poucos dias ninguém tocava em nada que eu tivesse tocado, ou pior, limpava antes com um pano ou lavava com sabão. Não me deixavam jogar baleado (ou queimada, em São Paulo), ou saiam do jogo fingindo náuseas assim que eu encostava na bola. Pior do que isso era a falta quase total de contato físico. E claro que eu já me apaixonava pelo menino mais bonito do colégio, que neste caso, era amigo íntimo da moça de sobrenome rico que me escolheu pra Cristo. Pra minha sorte, eu tinha duas amigas de ferro: Bethânia, e, principalmente, Ana Cláudia, que ficaram do meu lado, me apoiaram e acolheram, sendo vítimas elas também, por tabela, das arestas do escárnio. Devo a elas e a uma professora de português ter sobrevivido à rejeição geral daquela época.
Meus pais foram chamados pela coordenação pedagógica, mas só entenderam de fato a gravidade do que tinha acontecido quase trinta anos depois, quando eu contei a eles. Eu não queria mais ir à escola, mas não tinha jeito. Ficava meio escondida com as minhas amigas, brincando nos brinquedos que ninguém queria, longe de todos os outros. Muitas vezes eu não saía no recreio, ficava na sala estudando o assunto da aula seguinte. Foi assim que encontrei minha redenção. Não lembro quantas vezes na semana, mas umas duas com certeza, tínhamos aula de português depois do recreio, e a professora sempre começava pedindo a algum aluno que lesse em voz alta algum texto. Ainda tropeçávamos todos na pontuação, e as leituras eram quase sempre motivo de risos e gozação. Até que um dia ela pediu que eu lesse. Foi a leitura mais lisa e perfeita, sem erros, todas as frases terminando com excelente entonação. Eu já tinha treinado a leitura do texto umas duas ou três vezes, minutos antes, durante o descanso. Daí pra frente virei modelo, era o exemplo a ser seguido, sempre relembrado pela professora, de quem nunca vou esquecer. Nasceu ali minha relação com o texto, com a língua, com a literatura. Relação íntima de profunda gratidão. Anos mais tarde, numa sessão de análise, já esquecida do episódio da infância, recalcado e trancafiado nos confins da consciência, me dei conta de que fui salva pela literatura, a quem até hoje tento retribuir e honrar, e que, em todo caso, nunca mais saiu da minha vida (ou será que eu ainda estou precisando de ajuda?).
Aquilo durou quase dois anos. Claro que não com a mesma intensidade, mas mesmo no final, alguém sempre fazia questão de me lembrar do assunto. Só terminou realmente quando mudei de escola, pra cursar o ginásio.
Eu poderia falar horas sobre este assunto. De fato o fiz, mas eu pagava na época pra que me escutassem, o que significa, talvez, em última instância, que pra quem me lê agora, de graça, poderia não ser lá muito interessante. Arrisco, então, só algumas reflexões, de leve (prometo soltar só os cachorros mais mansos).
Acho artificial toda essa badalação a respeito. Acho, sem ter formação específica pra falar com propriedade, que o escárnio (ou bullying, para meus leitores fancier) é uma prática inerente à dinâmica de grupos, e que se torna mais cruel quando somos crianças, quando ainda não temos plenamente desenvolvidos os freios necessários ao convívio em sociedade (e que muitos de nós, ao ficar mais velhos, procuramos eliminar das nossas vidas pra voltar a ser um pouco mais verdadeiros e espontâneos).
E acho que vai parecer sofisma ou imprudência temerária o que vou dizer agora: que agradeço ter sido vítima daquele escárnio. Não pelo que me trouxe de ensinamentos, nem mesmo pela relação maravilhosa com a literatura, que isso deflagrou em minha vida. Agradeço ter sido vitima de bullying porque de todos os papéis que eu poderia ocupar naquela história ele é o menos perverso. Não troco ter sido a vítima, por ser o agressor, nem por ser ‘apenas’ cúmplice, nem muito menos por ser parte da grande maioria de maria-vai-com-as-outras. Não há imparcialidade no convívio social; bem olhado, todos nós vamos ocupando algum desses papéis em cada caso de escárnio (próprio ou alheio) ao longo de nossas vidas. Talvez o único papel melhor que o de vítima fosse o de amiga da vítima, o de Bethânia ou Ana Cláudia, neste caso; mas para estar no lugar delas eu precisaria trocar de papel com uma de minhas amigas, desejando, portanto, a alguma delas, a rejeição e o isolamento que tanto me marcaram.

18 março 2011

O melhor Carnaval do mundo (2ª parte)



Deambulei entre os visitantes e as revoadas de pombos. Nos contornos da praça, emoldurados pelas galerias e separados da multidão por uma pequena escadaria, outros foliões encenavam suas fantasias. Em volta deles, centenas de fotógrafos e turistas. Fiquei imersa no meio destes, disfarçada, igual, mas me sentindo diferente. Tinha atravessado uma cortina, fina e transparente, e deslizado pra dentro de um conto. Nada mais parecia real. Meu antigo sonho de Veneza era romântico, como o de tantas meninas e adolescentes. Mágico, sim, mas de uma magia tola, ou, em todo caso, recorrente. Não tinha nada a ver com aquilo que estava acontecendo. Deambulei, eu disse, entre visitantes, fotógrafos e pombos, circulando sempre, andando, um ponto em movimento é sempre mais difícil de localizar. Passei outra vez, cuidadosamente, diante daquele lugar, na entrada da praça, entre as duas colunas, mas eles já não estavam lá. Voltei para o centro da praça. Fotografei outras máscaras e personagens, vaguei, não lembro por quanto tempo. A tarde ainda estava alta. Foi somente quando ela começou a cair, úmida e cinza, pincelada com as cores fortes das fantasias como um quadro expressionista, que voltei a ver o homem-pássaro.
Ele estava no alto de um escadaria e desta vez se apresentava sozinho. Em volta dele, em semicírculo, outra vez a multidão se revezava pra chegar perto e tirar fotos. Me abaixei instintivamente atrás da cortina de gente, pra não ser vista. Rodeei o semicírculo até um ponto mais próximo. Subi um ou dois degraus apenas e observei, entre cabeças e câmeras que se mexiam em minha frente, as poses, os gestos, os lentos movimentos que ele fazia lá em cima.
Era belo o homem que agora eu intuía debaixo da fantasia. Belo e poderoso como todo mistério. Mãos fortes sob luvas branquíssimas, como as de um mimo. Um homem, agora eu sabia. Sem rosto, sem corpo, sem nome. Dele eu só conhecia os olhos pequenos por trás da máscara branca e a voz grave que chegou até mim junto ao hálito e o calor intensos que exalavam de dentro da fantasia. Apenas isso, e a habilidade pra me tirar de dentro da plateia e me trazer pra cima do palco. Era alto e magro, talvez atlético, corpo de dançarino. Cabelos castanhos como os olhos, eu diria, e algum grisalho nas têmporas, com uma onda teimosa na franja, talvez do lado direito. Boca estreita e nariz acentuado, italiano, impossível imaginar outro tipo. Tez morena, eu sentia, sem ter visto em nenhum momento sequer um centímetro de pele debaixo de todas as plumas da fantasia. Era pura imaginação minha, necessidade de compor o homem que eu tinha descoberto.
Preparei a máquina fotográfica e pensei num modo de chegar mais perto. Ainda não tinha um bom registro. Fui avançando muito lentamente entre os outros turistas, quando notei que ele vinha descendo alguns degraus da escadaria. Parei pra esperar o momento certo, avancei o filme na máquina e deixei o dedo indicador pronto pra apertar o botão e fazer a fotografia. O homem parou a pouco mais de um metro, virou-se de repente e me olhou outra vez nos olhos. Repetiu a pose estática, esperando que eu, finalmente, registrasse o momento. Fez de propósito. Em seu olhar havia outra vez um sorriso. Eu vacilei um instante, mas mesmo envergonhada e sem conseguir olhar pelo visor da câmera apertei o botão e tirei a foto.
Era a terceira vez que ele me descobria. Com gestos lentos e cuidadosos ele desarmou a pose estática e voltou para a galeria, lá no alto, já sob vários flashes agora que a noite escurecia a praça. Eu retrocedi um pouco e continuei, de longe, olhando a cena. Dessa distância mais cômoda pude ver, alguns instantes depois, que uma moça jovem, sem fantasia nem máscara, se aproximava do pássaro e cochichava em seu ouvido. Ele fez algumas perguntas que ela respondeu assinalando com o dedo em direção oposta à minha. O gesto suspenso dos braços, a pose, a cena se desmanchavam. Saíram apressados. Pra meu espanto o pássaro abandonava o palco, andando rapidamente pela galeria. Ia deixando a praça e, de alguma maneira, ia se desfazendo aos poucos a magia. Andava agora como um homem, o passo acelerado, de novo na corrente do tempo.
Do centro da praça onde eu estava, acompanhei instintivamente o movimento. Fui saindo também, na mesma direção, apenas a alguns metros de distância deles. Já era noite fechada. As luzes que iluminavam a cidade eram amareladas. Nas ruas vizinhas, a multidão da praça subitamente se rarefazia. Veneza é uma cidade labiríntica. Pela manhã, o caminho da estação de trem até a Piazza San Marco tinha me parecido excessivamente sinalizado. Os turistas eram veementemente desencorajados a aventurar-se em caminhos alternativos. Agora eu entendia. O homem-pássaro enveredou com a moça por uma rua estreita de uma Veneza íntima, familiar e sombria. Eu os seguia poucos metros atrás.
Pensei na noite, na hora, nos meus amigos que voltariam pra praça pra me reencontrar. Pensei na volta pra Verona, nos horários de saída dos trens. Temia me perder nas vielas sinuosas e não conseguir refazer o caminho de volta à praça, mas seguia andando na esperança de que o homem parasse ou entrasse em alguma casa. Fui deixando crescer a distância entre eles e eu. Torci para que ao menos ele tirasse a máscara. Fui desacelerando pouco a pouco. Na rua vazia só se escutavam nossos passos. Parei finalmente e no instante em que desisti de conhecer aquele homem, ele, já irremediavelmente longe, tirou com a mão direita a máscara. Não gritei pelo homem para que ele se virasse. Não vi seu rosto. Ele de costas era ainda o mesmo pássaro. A máscara na mão, branca e fantasmática, olhava em minha direção.
Voltei à praça e regressamos a Verona. Na manhã seguinte meus amigos seguiram para Roma, continuando a nossa programação. Eu voltei a Veneza, sem saber se conseguiria me encontrar depois, novamente, com meu grupo de amigos. Já na chegada, na estação de trem, fui informada de uma greve de ferroviários que interromperia o serviço logo no inicio da tarde. Corri pelas ruas da cidade. Tentei algum atalho que me fizesse chegar mais rápido na praça. Me perdi, mas consegui chegar finalmente.
Manhã de Carnaval na Piazza San Marco. Poucos foliões se apresentavam. Procurei o homem em outras fantasias. Ia reparando nos gestos, nos movimentos, buscando os olhos pequenos por trás de máscaras coloridas. O tempo passou rapidamente. Não havia hospedagem em Veneza, e temendo vagar a noite toda e sozinha, tomei o caminho de volta, pra pegar o último trem daquele dia. Fui calculando minuciosamente o tempo. No meio do caminho, parei num quiosque de máscaras e busquei aquela pela qual tinha me apaixonado. Não achei. Não daquele tamanho, não com desenho idêntico. Encontrei, no entanto, uma menor, também de porcelana, com o mesmo motivo, mais simples, mas não menos bonita. De um lado um sorriso, do outro uma lágrima. “Você tem os olhos tristes”, lembrei. Comprei a máscara –que mais de vinte anos depois ainda conservo– e corri menos triste para a estação de trem, com um sorriso e uma lágrima. Encontrei meus amigos em Roma, por um mero acaso, e a viagem continuou conforme o previsto.
Voltei a Barcelona, onde vivia, e o primeiro gesto foi revelar os filmes da viagem. De tempos em tempos voltava a ver aquelas fotografias. Rever aquela fantasia me transportava sempre para aquele momento de magia. Contei poucas vezes essa história, esqueci dela algumas épocas de minha vida. Muitos anos se passaram e as fotos se perderam, ironicamente, com negativos e tudo, em um roubo quando eu me mudava pra São Paulo. Senti muito essa perda. Mais do que todos os livros, discos, filmes, alguma jóia e outros pertences que um ladrão bobo carregou em duas malas trancadas com cadeados. Tem uma época da vida em que a gente quer que a fantasia se torne realidade. Tem outra em que a gente precisa que a realidade nos mostre alguma fantasia.
Um tempo depois do roubo, dois ou três anos, talvez mais, não lembro, um dia sentada na sala de espera de um consultório médico, abri, por falta de opções mais interessantes, uma edição da revista Caras. Não sei qual, especificamente, mas imagino que seria a do mês de Março. Folheei impacientemente as fotos, as caras, as poses dos famosos. Antes de fechar a revista, literalmente na última página, antes da contracapa, numa sessão chamada Foco, encontrei esta imagem: o homem-pássaro, ele mesmo, suas plumas, seus olhos pequenos a me fitar desaforadamente. Nem preciso dizer que arranquei a página inteira da revista num descuido da atendente, dobrei rapidamente e guardei para sempre, recuperando, por mais um evento misterioso ou coincidente, aquela parte da minha vida. 
Dizem por aqui que o de Salvador é o melhor Carnaval do mundo. Outros dizem que é o do Rio ou o de Recife. São alegres, sem dúvida, festivos e multicoloridos como aquela fantasia. Mas Carnaval pra mim talvez não seja, necessariamente, sinônimo só de alegria, mas principalmente de magia, encanto, feitiço. Em todo caso, penso que o melhor Carnaval do mundo será aquele em que com você aconteça algo daquilo que aconteceu comigo em Veneza. 

08 março 2011

O melhor Carnaval do mundo


Veio retrocedendo em minha direção. Eu estava protegida por uma coluna imensa, meio escondida atrás dela. Quando aquela figura multicolorida chegou ao meu lado, virou-se de repente, apoiou os dois braços teatralmente na coluna e me prendeu entre eles. Seu rosto ficou, pela primeira vez, a um palmo do meu. Comecei a sentir o barulho das máquinas fotográficas e a luz dos flashes em nossa direção. Daquela distância eu podia ver bem os olhos por trás da máscara toda branca. Eram castanhos, pequenos e se enfiavam desaforadamente nos meus.
Eu tinha chegado em Veneza na manhã daquele dia. Tinha percorrido com meu grupo de amigos os principais pontos, os canais e as pontes, seguindo a maré de turistas que escoava organizadamente e desembocava na Piazza San Marco. No trajeto até lá uma única coisa tinha me chamado a atenção especialmente: uma máscara de porcelana que representava em preto e branco um rosto feminino dividido ao meio: de um lado um sorriso, do outro uma lágrima. Cheguei a perguntar o preço, mas como tudo na Europa, para alguém que viajava com mochila nas costas, comendo sanduiche e dormindo em albergue por dois meses, era proibitivo. Deixei o quiosque de máscaras pressionada pelos amigos, mas sentindo que me apaixonara pela figura delicada, sentindo que me arrependeria por não garantir que fosse minha.
Em San Marco esse pesar se esvaneceu. Tudo naquele lugar era deslumbrante. O sonho de Veneza se realizava pra mim. Corri para a Ponte dos Suspiros e tive ali minha primeira decepção: era linda, mas não tanto como a que crescera em minha imaginação desde os anos da infância. A praça, no entanto, com a qual nunca tinha sonhado, era uma descoberta fascinante. Fazia frio. Vínhamos de Verona, onde tínhamos conseguido lugar para passar a noite, e já nos aproximávamos do meio-dia. Meus amigos queriam seguir adiante, explorar outros pontos da cidade. Eu estava enfeitiçada. Nos separamos pela primeira vez em toda a viagem, fiquei só, sentada na base de uma estátua à entrada da praça, com o mar e as gôndolas atrás de mim, comendo meu sanduiche enquanto olhava sucederem-se as fantasias, as máscaras, os visitantes.
O Carnaval de Veneza é teatral e envolvente. Os foliões trabalham o ano inteiro em suas roupas e máscaras perfeitas, depois as exibem suntuosamente. Não há música, não se grita nem se dança. Ouvem-se principalmente passos, vozes, pombas, máquinas fotográficas e aplausos. Tudo é pausado e estudado: as poses, os gestos, as figuras. O frio, a leve bruma, a expressão congelada das máscaras: o tempo se suspende um pouco.
Terminei meu sanduiche e fui voltando pra dentro da praça. No caminho avistei, a uma distância de uns dez metros, duas figuras que se apresentavam juntas ante dezenas de fotógrafos e turistas. Estes formavam um semicírculo que funcionava como a plateia de um teatro para um palco imaginário entre duas imensas colunas, onde uma figura fantasiada de música e outra fantasiada de algum bicho indescritível se exibiam. Parei atrás dessa plateia e fiquei ali, não sei quanto tempo, tentando entender a fantasia. Tirei algumas fotos e reparei nos movimentos daquela ave estranha: eram leves e longos, um passo ou um gesto emendando sempre no seguinte, sem cortes, sem rupturas. A plumagem colorida, feita de losangos sobrepostos, não deixava ver nada do corpo. Era alto e grande demais pra ser o de uma mulher, leve e delicado demais para ser o de um homem. Procurei as mãos e os pés e a equação se repetia: grandes e fortes, leves e doces. Não sei quanto tempo fiquei ali. As duas figuras interagiam. Os fotógrafos iam e vinham, de tal maneira que num momento dado fiquei, sem perceber, na primeira fila do teatro improvisado. A figura vestida de ave soltou-se um pouco do palco, veio andando de costas, rompeu a linha imaginária da quarta parede, virou-se de repente e abriu pela primeira vez as imensas asas para o deleite da plateia e me olhou fixamente. Ficou assim alguns segundos. O ruído das máquinas fotográficas era ensurdecedor. Eu já nem me lembrava da minha. O pássaro ria, por detrás da máscara, com o sorriso nos olhos, ele ria de mim, só pra mim. Fiquei envergonhada e escorreguei pra dentro da plateia e depois pra fora dela. Contornei o grupo e me escondi atrás de uma das colunas, num lugar incompreensivelmente vazio. Ia fazer finalmente uma boa foto, levar uma lembrança daquela figura de todo inalcansável: pássaro imaginário, dançarino assexuado e atrevido.
Preparei a câmera. A ave estava de novo de costas, no extremo do palco, na outra coluna, ao lado da música, uma bela mulher, de vestido roxo, pequenos instrumentos e notas dourados pendurados por todo o corpo. Fiquei meio escondida, a máquina preparada, esperando que a figura se virasse um pouco e ficasse de frente ou de lado. Em vez disso, ela veio retrocedendo em minha direção, sempre de costas pra mim. Fui escorregando instintivamente o corpo ao redor da coluna gigantesca, mas ao chegar ao meu lado, ela virou-se de repente e me olhou. Apoiou rapidamente os dois braços na coluna prendendo-me. Fiquei petrificada, sentindo os olhos da platéia e o hálito intenso do homem por trás da máscara. E ele disse  numa voz grave: “Parla italiano?”. Espanhol e português, respondi eu em algum idioma que não lembro. Ele fez um gesto de desconsolo com a cabeça e continuou pausadamente: “Tu hai gli occhi triste”, e nos olhos pequenos e penetrantes eu vi que ele se importava com que eu realmente entendesse o que ele tinha dito. Eu entendi, mas não respondi nada. Acho que sorri. Ele insistiu ainda uma vez, arriscando um espanhol atrapalhado. Depois me soltou plasticamente e voltou ao palco. Eu aproveitei pra fugir.
Sentei num banco a vinte metros da cena. Observei um instante e constatei que ninguém me olhava mais, nem tirava mais fotos. Ali naquele banco chorei longamente. Um choro profundo, sentido e desconhecido, de uma tristeza que um estranho detrás de uma máscara tinha revelado. Alguns instantes depois, levantei os olhos e vi, no palco onde tudo tinha começado, que o homem na fantasia de pássaro perguntava algo à sua companheira de cena. Ela nada respondeu, mas levantou lentamente o braço e apontou em minha direção. Ambos me olhavam e eu fugi mais uma vez.
(continua)

06 março 2011

O intruso


É Carnaval. Mas não há nada mais distante de mim neste momento que a imagem de ruas assardinhadas de gente. Tenho em mente, muito pelo contrário, a imagem de uma rua vazia da cidade de Córdoba, ou de Mendoza, na Argentina. São 3, 4 ou 5 horas da manhã, não sei bem, de alguma noite do final dos anos 50 ou início dos 60, também não sei, a memória não é minha. É meu pai quem caminha, voltando com amigos de alguma farra ou baile, por essa rua vazia. Eles vêm rindo e relembrando a memória recente, a festa, os fatos dos quase vinte ou vinte e poucos anos: a memória não é ali, ainda, um assunto candente.
Não há mais bonde a essa hora, carro a mocidade não tinha, caminhar era a única saída. A rua de Mendoza ou de Córdoba é amarelada, como toda rua antiga, como uma rua numa foto velha ou num cartão postal, essa memória é minha. É larga a rua, com poucos carros estacionados. Os amigos se despedem a cada nova esquina, se abraçam ruidosamente enquanto ainda caminham, fazem uma última brincadeira e desviam. Meu pai vai ficando sozinho. Somente ele e, ao longe, um, dois, três cachorros, não sei, uma matilha talvez. De cães vagabundos, noturnos, vadios. Mais ninguém. São poucas as quadras que ele tem de percorrer sozinho. Meu pai lembra bem: uma pedra em cada mão pra afugentar o perigo. Mas não é o ladrão que vem, nem a morte da navalha arrabaldeira que espreita na sombra: são os cães que vêm vindo. Um deles avista meu pai de longe e começa a latir. Os outros logo se juntam e o latido vira um uivo conjunto, um alarde, um aviso. A rua, a noite, é deles, os cães: meu pai é o intruso.
Nesta rua vazia, de que não tenho memória, é dos cães (acredite!), dos vadios vira-latas em bando que meu pai tem medo.