23 abril 2011

Sobre pensamentos dolorosos

Não adianta. Sempre vou precisar escrever sobre este assunto. Ainda que escrever seja não fazer nada.
Uma das coisas que a gente aprende logo, quando começa a trabalhar em empresas, é que não se deve começar um texto com uma negativa. Teme-se que toda a leitura que vem a seguir fique tingida por um tom sombrio ou pessimista. Você dificilmente vai ver um texto jornalístico ou uma comunicação empresarial iniciar por um não, um nunca ou um nada. E é assim que eu quero começar este. Não para favorecer um clima pessimista ou negativo, mas para estimular um comportamento contrário, na contramão, a contrapelo.
Não. Não é um assunto agradável, nem confortável. É, ao contrário, um assunto que a gente evita, como começar um texto com uma negativa. Me refiro àquela parte da realidade que a gente vai apagando até ficar quase invisível. Àquela parte da realidade que a gente escorrega os olhos por cima pra não ver, aquela de que a gente desvia quando vem ao nosso encontro. Tem quem não queira ver porque é feio, porque dá medo ou porque dá nojo. Tem quem desvie, o olhar ou o corpo, para evitar um pensamento doloroso.
A cidade é o palco desses encontros, especialmente as nossa metrópoles inchadas e injustas, em que a miséria e a violência foram se assentado como parte da paisagem. São encontros cotidianos, ninguém está mais a salvo deles, a não ser que se isole na irrealidade do seu apartamento ou condomínio, e sempre que tenha empregados mudos e bem fardados e esteja bem distante da visão da rua lá embaixo ou lá longe. Quem tem que sair na rua, já nem digo para andar a pé ou pegar um ônibus, mas quem tem que sair nem que seja até o limite do portão de sua casa, está sujeito a estes momentos, estes cruzamentos ou interseções entre a realidade como a gente quer, precisa ou prefere que ela seja, e a realidade como ela se impõe pra gente. As pessoas da minha classe, essa classe indefinida, que não é pobre nem rica, a que se chama inconsistentemente de classe média, vivem cotidianamente desviando, os olhos, o corpo e a mente, desses encontros.
A metrópole é, certamente, e não há como fugir disso, composta por uma superposição de realidades diferentes e até divergentes. O que vemos nas nossas metrópoles, em que grassa a miséria e o desamparo, no entanto, não é uma superposição, que a meu entender implicaria convívio e diversidade, mas a criação coletiva de uma cidade fantasmática ou cenográfica -a modo de Lars Von Trier em sua trilogia americana- em que há zonas de luz em que me movo e grandes áreas de sombra e invisibilidade, em que tudo se vê ao mesmo tempo que fingimos não ver nada. Ali, no breu, na sombra, o que eu não gosto, o que me dá medo ou me dá nojo, o que me gera culpa, aquilo com o que não concordo, o que mancha a minha história de vidinha feliz com começo, meio e fim de conto maravilhoso. A vida é dura: eita clichê horroroso, que serviria muito mais para falar da vida dos outros, esses que a gente joga na sombra, mas que a gente usa sempre para falar das nossas próprias pequenas e miseráveis misérias de classe média.
Mas eu comecei dizendo que escrever era não fazer nada. E é. Esse é um problema que tem solução, mas que depende de ações conjuntas e pelo qual tem -acredito- muita gente fazendo muita coisa. Eu só quero escrever aqui sobre estes pensamentos dolorosos, que me acometem cada vez que cruzo um miserável, cada vez que digo um boa noite cínico ao vigia da minha rua, que vai passar a noite lutando contra o sono dele para cuidar de que o meu sono seja tranquilo e revigorante. Estes pensamentos dolorosos de que a maior parte dos meus amigos desvia imediatamente, os olhos, o corpo, a mente e a alma, e só uma pequena parte permite carregar consigo. Pra dentro da vidinha besta, da vidinha cor-de-rosa, pra despertar a culpa, a raiva, a angústia. Pra dentro de casa, pra dentro do trabalho, pra dentro do pensamento, pra habitar e vestir a gente por dentro, ainda que a vida se torne mais cinza. A estes amigos, conhecidos e desconhecidos, um elogio e minha companhia.

20 abril 2011

Uma casa muito engraçada

Renè Magritte. La Victoire. 1938

Engraçada não é bem a palavra.
Antigamente eu gostava de dizer que era como um caracol, carregando a casa nas costas. Não uso mais essa metáfora. Não é uma casa que vai comigo. São casas que eu construo e vou deixando por onde passo.
Tem uma casa em Sitges, perto de Barcelona, que tem meus móveis: um sofá que herdei dos meus pais e uma estante de loja, de ferro e vidro, por que me apaixonei, ainda que fosse inteiramente inútil aos propósitos de guardar qualquer coisa.
Tem pedaços da minha casa em casas de amigos em São Paulo.
Tem uma casa em Córdoba, na Argentina, que guarda minha casa dentro de caixas, malas e móveis. Está lá minha casa, ali dentro, esperando que eu volte.
Tem uma casa na praia, em Salvador, que tem quadros meus nas paredes. Quadros que ficaram bem naquela casa.
Eu tenho um quarto na casa da minha mãe. Um pequeno quarto pra onde eu sempre volto.
E tenho uma casa onde não moro. Com uma cama que eu mesma escolhi, grande, bonita, cômoda, onde não durmo. Uma cozinha que reformei unindo-a à sala por uma mesa em que não como.
Eu já tenho uma casa no Caribe, uma casa que não sei se vê a água transparente do mar ou se apenas escuta o seu murmúrio. Outra casa que me espera. Pra me habitar.
Uma vez a trabalho, a caminho entre Belo Horizonte e Diamantina, sentei no meio-fio do posto de gasolina, na beira da estrada. Olhei para um lado e para o outro da pista. Ali, no meio do nada, eu sorri, me sentindo em casa.

12 abril 2011

A praça

Sentei sozinha, num banco na sombra, bem no meio da praça. Caminhar pela cidade onde a gente mora é fundamental, mas parar de vez em quando em alguma praça no caminho, é ainda mais importante. Esta é uma praça pequena, mas bem frequentada. Não é cêntrica, é inclusive um pouco afastada e desconhecida da maioria das pessoas, mas começa a ser visitada por gente que vem, como eu, descansar, passar a hora do almoço, do café ou do lanche, conversar, ler ou encontrar amigos distantes (no caso, esta amiga que vos fala).

Tenho vindo com frequência, me acostumei a parar por aqui de vez em quando. 

Quase toda praça fica num cruzamento entre ruas e avenidas. É como um ponto final em uma longa frase ou como uma vírgula que propõe uma pausa, uma inflexão, um respiro, um descanso. Toda praça é um descanso: pro corpo, pra alma, pros olhos, pro tempo e principalmente, pra pressa. Essa pressa que a gente acha que tem, mas que é ela, quase sempre, que tem a gente.

Há um homem nessa praça que olha pra mim, não sei dizer ao certo se nos conhecemos. Deve ficar tentando adivinhar se estou escrevendo ou desenhando, e talvez se perguntando se ele faz parte do desenho. Ao meu redor há ainda outras pessoas que vêm de lugares diferentes, com histórias diferentes, se sentar nessa praça. Tem gente que apenas passa, não pára nem senta, atravessa depressa, andando ou correndo. Mas no geral, quem corre aqui são os cachorros e as crianças, e não o tempo. Quando a gente se senta ele parece que pára e se enrosca e circunda a gente. Fica tudo imerso num tempo envolvente, atrás, na frente, em cima, embaixo.

Uma cidade sem praças é uma cidade sem pausas. 

Escrever um blog é como criar uma praça. E não falo apenas deste, mas de um sem fim de blogs que tenho encontrado e que, como o meu, não querem ser avenidas, nem ruas, nem túneis, nem pontes, nem viadutos. Se este blog pudesse ser alguma coisa, acho que ia gostar de ser esta pausa. Pra fazer o tempo esperar pela gente.

07 abril 2011

Café requentado

Pra quem acredita no Grande Amor, em Amor Eterno ou em outros amores com maiúsculas, este post vai parecer ridículo. Talvez ele seja ridículo de qualquer maneira, escrever sobre o amor é sempre meio suspeito e quase sempre piegas (exceção feita à literatura ou à música que podem falar dele sem receio). Mas se você, como eu, tem o “amor disperso” (a expressão é da poetisa cubana Dulce María Loynaz) talvez você se identifique com alguma das bobagens que vou dizer a respeito. Na verdade, este post é quase um conselho (adoro quebrar minhas próprias regras). Pra quem? Não sei, veja aí se ele serve.
Pra quem amou muitas vezes, fica uma sensação de que a gente nunca deixa de amar alguém completamente. Podem passar muitos anos e provavelmente em muitos casos, ao reencontrar uma pessoa a quem se amou loucamente, a gente até pense – aliviado – “que bom que não estamos mais juntos”, ou ainda mais distanciadamente, “como pude amar essa pessoa?”. Mas se ao reencontrar esse amor antigo, você ficar perto dele por um tempo, compartilhando um mesmo espaço, um mesmo trabalho ou qualquer outro tipo de atividade, provavelmente você estará correndo um sério risco de se apaixonar de novo. Encontrar a pessoa amada sempre desperta algo do encantamento ou da afinidade que existiu antes. Acho que o amor nunca vai embora totalmente. Esse encantamento é como aquela velinha de aniversário, aquela que você apaga e ela acende novamente. E quando essa velinha teimosa ameaça acender de novo, você revive um pouco daquele amor já conhecido. É tentador, curioso, perigosamente atraente.
Tiro o chapéu pra quem consegue estabelecer uma amizade, digamos indiferente, com alguém com quem esteve alguma vez ligado amorosamente. Eu tentei quase sempre, e acreditei durante muito tempo nessa possibilidade, até que comecei a perceber que, salvo adoráveis exceções, quase todos os meus ex-companheiros, esses “apenas amigos”, voltavam, de tempos em tempos, a ter contato comigo pra marcar território: coisa de cachorro macho mesmo, fazer xixi nos cantinhos do terreno. Sempre muito dissimuladamente (às vezes nem isso), com cara de conversa desinteressada, mas fazendo as perguntas certas e atualizando os dados. Cheguei a reencontrar intimamente algum desses ex-amados e me deixei levar pelo restinho daquele amor antigo. Fica aqui o veredito: provar outra vez um amor do passado tem sabor de café requentado. Não é como a madalena de Proust, que molhada no chá, relembra vividamente um passado terno e reconfortante. Se o passado de Proust estivesse de fato na frente dele naquele momento, aposto que a experiência não seria tão agradável. O beijo (de) novo, o sexo (de) novo azeda o molho e entorna o caldo. Quem entende de culinária sabe que muitas comidas ficam muito mais saborosas no dia seguinte. Este não é o caso. Quem gosta de café, quem o aprecia realmente, não toma café de ontem, ele tem de ser fresquinho, passado na hora.
Mas é a tal história: se conselho fosse bom ninguém dava e talvez algum dia eu morda ou queime a língua com café requentado. Só posso dizer que, hoje em dia, se eu consigo identificar esses “cachorros” (sem ofensas, por favor, meninos) eu fujo! E se encontro com algum daqueles ex-amores que chamei de “adoráveis exceções”, é curioso como em algum momento uma troca de olhares, uma frase ou aquela piada que só eu e ele entendemos deixa evidente o perigo que estamos correndo. E ambos fugimos.
Como eu disse antes, falar do amor costuma produzir textos bobos e frágeis como este. Termino, então, com o poema de Dulce María Loynaz, pra tentar recuperar um pouco da dignidade perdida:

POEMA IX
Dichoso tú, que no tienes el amor disperso…, que no tienes que correr detrás del corazón vuelto simiente de todos los surcos, corza de todos los valles, ala de todos los vientos.
Dichoso tú, que puedes encerrar tu amor en sólo un nombre, y decir el color de sus ojos, y medir la altura de su frente, y dormir a sus pies como un fiel perro.

01 abril 2011

Instável


Minha avó tinha vertigem quando olhava o céu. Precisava segurar na mão de alguém pra conseguir ver um eclipse, um fiapinho de lua – como diz minha mãe e meu sobrinho repete – ou uma noite cheia de estrelas. Essa história sempre me fez sentir muito perto dela.
Duas notícias, ontem, na página de abertura do meu provedor de Internet, chamaram minha atenção especialmente: uma animação sobre a diferença de gravidade em diferentes lugares do planeta Terra e uma ilustração que mostra as marcas – gigantescas – deixadas por meteoros em Saturno e em Júpiter. Vivemos sobre a casca de um corpo líquido e ardente. Andamos sobre esta casca curva como se fosse plana, como se fosse firme, sólida, e, principalmente, eterna. Planejamos o que vamos fazer na próxima meia hora, no dia seguinte, daqui a seis meses, dez anos, e na nossa velhice. Procuramos estabilidade em todas as instâncias possíveis: no emprego concursado, no casamento pra sempre, na casa própria, na assinatura do jornal, no calendário, na poupança, na previdência. Mas de vez em quando, fumamos um bom baseado, bebemos ou metemos pra dentro alguma química que faça o estável ficar leve ou fortemente abalado. Antídoto pra um veneno que a gente mesmo inventa. Caminhar sobre a casca curva e olhar o céu vertiginoso não deveria ser suficiente? Deve ser que a gente anda cada vez menos na rua e quando o faz, só olha pra frente.
Está bem, eu entendo: a instabilidade permanente pode ser incômoda e certamente não interessa a muita gente, especialmente aos poderosos, que acabam fazendo da estabilidade alheia fonte de poder e riqueza. Mas a noite pode se precipitar sobre a nossa cabeça na forma de um meteoro e há lugares no planeta em que somos mais leves, mais soltos, mais voadores! Isso não conta?
Muitas crianças, quando começam a adquirir maior consciência do mundo à sua volta, desenvolvem um certo pavor da hora de dormir, querem aproveitar cada segundo e muitas vezes só se entregam finalmente ao sono depois de muito choro. Essas mesmas crianças, mais ou menos na mesma idade, procuram, enquanto despertas, lugares altos, saltos, quedas, de verdade ou de mentira, giram, giram e giram, repetidamente, pra sentir o barato da tontura. Impossível não pensar na expressão “carpe diem”, já tão desgastada pela efusão bem-intencionada (nem o inferno aguenta mais!) de powerpoints de auto-ajuda. Prefiro então o que disse Rainer Werner Fassbinder, quando lhe perguntaram porque quase não dormia: dormirei quando estiver morto. Tem que ser meio criança ou meio artista meio louco pra sentir essa vertigem da vida?
Cada vez que eu tive algum desespero ou uma tristeza profunda, me aferrei à consciência de que de nada adianta sofrer se de um segundo para o outro tudo pode desaparecer, sem que sequer tenhamos tempo de ser conscientes disso.
Minha avó sentia vertigem quando olhava o céu. Acho que herdei dela este sentido estranho de instabilidade. Isso me aproximou desta avó que morreu muitos anos antes de que eu nascesse. Essa vertigem, esse gesto de segurar na mão de alguém para enfrentar o desconhecido. Hoje, pensando nos loucos e nas crianças, nos meteoros e nas diferentes forças de gravidade, me pergunto se minha avó, mesmo com medo, não gostava de olhar, sempre que podia, as estrelas em permanente fuga que eu imagino que ela via.