06 março 2011

O intruso


É Carnaval. Mas não há nada mais distante de mim neste momento que a imagem de ruas assardinhadas de gente. Tenho em mente, muito pelo contrário, a imagem de uma rua vazia da cidade de Córdoba, ou de Mendoza, na Argentina. São 3, 4 ou 5 horas da manhã, não sei bem, de alguma noite do final dos anos 50 ou início dos 60, também não sei, a memória não é minha. É meu pai quem caminha, voltando com amigos de alguma farra ou baile, por essa rua vazia. Eles vêm rindo e relembrando a memória recente, a festa, os fatos dos quase vinte ou vinte e poucos anos: a memória não é ali, ainda, um assunto candente.
Não há mais bonde a essa hora, carro a mocidade não tinha, caminhar era a única saída. A rua de Mendoza ou de Córdoba é amarelada, como toda rua antiga, como uma rua numa foto velha ou num cartão postal, essa memória é minha. É larga a rua, com poucos carros estacionados. Os amigos se despedem a cada nova esquina, se abraçam ruidosamente enquanto ainda caminham, fazem uma última brincadeira e desviam. Meu pai vai ficando sozinho. Somente ele e, ao longe, um, dois, três cachorros, não sei, uma matilha talvez. De cães vagabundos, noturnos, vadios. Mais ninguém. São poucas as quadras que ele tem de percorrer sozinho. Meu pai lembra bem: uma pedra em cada mão pra afugentar o perigo. Mas não é o ladrão que vem, nem a morte da navalha arrabaldeira que espreita na sombra: são os cães que vêm vindo. Um deles avista meu pai de longe e começa a latir. Os outros logo se juntam e o latido vira um uivo conjunto, um alarde, um aviso. A rua, a noite, é deles, os cães: meu pai é o intruso.
Nesta rua vazia, de que não tenho memória, é dos cães (acredite!), dos vadios vira-latas em bando que meu pai tem medo.

Um comentário:

  1. Amei! Engraçado que essa lembrança - que também não é minha - me trouxe uma melancolia do tempo em que tudo que nos podia fazer mal tinha pelos e latia. Bons tempos...

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