08 maio 2011

Amor pelas cidades

Avenida Hipólito Yrigoyen, Córdoba, Argentina.

Quando eu era ainda bem pequena, meu sonho era morar um ano em cada cidade do mundo. Não lembro quantos anos eu tinha, mas não devia ser muito, pra eu achar que dava pra conhecer o mundo todo no decorrer de uma vida. Somente mais tarde vieram os sonhos “possíveis”: ser cantora famosa como Gal Costa, ser aeromoça, ser freira, ser puta. Estes todos e outros igualmente representativos do amadurecimento conflituoso de toda menina, desapareceram com o tempo. O outro, no entanto, aquele primeiro e impossível, permaneceu. Era sonho de criança, e no mundo do faz-de-conta, onde tudo é possível, vou cumprindo de certa forma meu pequeno e incomensurável projeto de vida. Já morei em algumas cidades e ainda tenho alguns anos pela frente. Se pensarmos em termos de porcentagem é evidente que vou ficar me devendo, mas pensemos diferente, buscando daquele sonho o cerne, o latejamento: o impulso de viver muitas vidas numa só, a necessidade de explorar diferentes realidades ao redor do planeta, e, principalmente, o amor pelas cidades.
Nunca entendi porque em Salvador, cidade onde nasci, mas não apenas ali, as pessoas cospem e escarram nas ruas, sem qualquer sinal de constrangimento, e, suspeito, inclusive, que com certa dose de orgulho. Estou certa de que há alguma explicação histórica, sociológica ou antropológica para este gesto, possivelmente oriundo das relações de poder e dominação nos territórios ocupados por colonizadores europeus. Li por aí que também na China, do outro lado do planeta, é costume escarrar nas ruas, e ainda que este  hábito teria sido sinal de refinamento na alta sociedade do Brasil do Século XIX., daí as finas escarradeiras e cuspideira de prata, porcelana e vidro. Estas explicações, no entanto, não bastam para fazer cessar o meu espanto e enfado. Não consigo deixar de ver aí o desprezo pelo lugar em que se habita (e talvez seja isto, exatamente, o que há para ser visto).
No desconhecimento das razões deste desprezo pela coisa pública (a rua, a calçada, o poste de luz, onde o baiano deposita seus excrementos), sempre pensei ser a reação a um outro tipo de desprezo que vem em sentido contrário: o dos governantes, desde os tempos da colônia, pelos habitantes da cidade. Salvador, como tantas outras cidades coloniais importantes, não foi feita para o escravo, para o pobre ou para o pedestre, mas para o mandatário, o motorizado, o detentor do poder econômico. As calçadas são estreitas e perigosas, as vias de alta velocidade, as praças e áreas de lazer escassas e abandonadas. Quem cospe na rua, escarra na calçada, faz xixi nas esquinas, assoa o nariz e limpa a mão de meleca no primeiro poste de luz que encontra, sobre o qual outro baiano vai se apoiar alguns segundos ou minutos depois, está talvez perpetuando um gesto de desprezo por outro desprezo muito maior, anterior e mais grave. Esta é apenas outra justificativa possível, mas em todo caso, justificável ou não, o resultado de tudo isso não é nada agradável. O desprezo é uma marca na cidade, com o que temos de conviver e do que temos de esquivar sempre para que não nos atinja, literalmente.
Não estou em Salvador agora, mas em Córdoba, no interior da Argentina. Aqui, como na maioria das cidades argentinas, as calçadas são largas, as praças amplas e generosas, com muitos bancos e muita sombra, sinal, provavelmente, de uma sociedade que foi e ainda é um pouco mais justa. Aqui vou à forra e caminho quilômetros por dia. O espaço público é ainda uma extensão da casa, lugar de estar, de conviver, de compartilhar. A violência, que aqui também cresce, e com ela o desprezo, vai mudando aos poucos este cenário. Mas eu ando feliz aqui, ainda, exercitando a cada passo meu amor pelas cidades, vivendo um pouco mais meu sonho bobo de menina.