18 março 2011

O melhor Carnaval do mundo (2ª parte)



Deambulei entre os visitantes e as revoadas de pombos. Nos contornos da praça, emoldurados pelas galerias e separados da multidão por uma pequena escadaria, outros foliões encenavam suas fantasias. Em volta deles, centenas de fotógrafos e turistas. Fiquei imersa no meio destes, disfarçada, igual, mas me sentindo diferente. Tinha atravessado uma cortina, fina e transparente, e deslizado pra dentro de um conto. Nada mais parecia real. Meu antigo sonho de Veneza era romântico, como o de tantas meninas e adolescentes. Mágico, sim, mas de uma magia tola, ou, em todo caso, recorrente. Não tinha nada a ver com aquilo que estava acontecendo. Deambulei, eu disse, entre visitantes, fotógrafos e pombos, circulando sempre, andando, um ponto em movimento é sempre mais difícil de localizar. Passei outra vez, cuidadosamente, diante daquele lugar, na entrada da praça, entre as duas colunas, mas eles já não estavam lá. Voltei para o centro da praça. Fotografei outras máscaras e personagens, vaguei, não lembro por quanto tempo. A tarde ainda estava alta. Foi somente quando ela começou a cair, úmida e cinza, pincelada com as cores fortes das fantasias como um quadro expressionista, que voltei a ver o homem-pássaro.
Ele estava no alto de um escadaria e desta vez se apresentava sozinho. Em volta dele, em semicírculo, outra vez a multidão se revezava pra chegar perto e tirar fotos. Me abaixei instintivamente atrás da cortina de gente, pra não ser vista. Rodeei o semicírculo até um ponto mais próximo. Subi um ou dois degraus apenas e observei, entre cabeças e câmeras que se mexiam em minha frente, as poses, os gestos, os lentos movimentos que ele fazia lá em cima.
Era belo o homem que agora eu intuía debaixo da fantasia. Belo e poderoso como todo mistério. Mãos fortes sob luvas branquíssimas, como as de um mimo. Um homem, agora eu sabia. Sem rosto, sem corpo, sem nome. Dele eu só conhecia os olhos pequenos por trás da máscara branca e a voz grave que chegou até mim junto ao hálito e o calor intensos que exalavam de dentro da fantasia. Apenas isso, e a habilidade pra me tirar de dentro da plateia e me trazer pra cima do palco. Era alto e magro, talvez atlético, corpo de dançarino. Cabelos castanhos como os olhos, eu diria, e algum grisalho nas têmporas, com uma onda teimosa na franja, talvez do lado direito. Boca estreita e nariz acentuado, italiano, impossível imaginar outro tipo. Tez morena, eu sentia, sem ter visto em nenhum momento sequer um centímetro de pele debaixo de todas as plumas da fantasia. Era pura imaginação minha, necessidade de compor o homem que eu tinha descoberto.
Preparei a máquina fotográfica e pensei num modo de chegar mais perto. Ainda não tinha um bom registro. Fui avançando muito lentamente entre os outros turistas, quando notei que ele vinha descendo alguns degraus da escadaria. Parei pra esperar o momento certo, avancei o filme na máquina e deixei o dedo indicador pronto pra apertar o botão e fazer a fotografia. O homem parou a pouco mais de um metro, virou-se de repente e me olhou outra vez nos olhos. Repetiu a pose estática, esperando que eu, finalmente, registrasse o momento. Fez de propósito. Em seu olhar havia outra vez um sorriso. Eu vacilei um instante, mas mesmo envergonhada e sem conseguir olhar pelo visor da câmera apertei o botão e tirei a foto.
Era a terceira vez que ele me descobria. Com gestos lentos e cuidadosos ele desarmou a pose estática e voltou para a galeria, lá no alto, já sob vários flashes agora que a noite escurecia a praça. Eu retrocedi um pouco e continuei, de longe, olhando a cena. Dessa distância mais cômoda pude ver, alguns instantes depois, que uma moça jovem, sem fantasia nem máscara, se aproximava do pássaro e cochichava em seu ouvido. Ele fez algumas perguntas que ela respondeu assinalando com o dedo em direção oposta à minha. O gesto suspenso dos braços, a pose, a cena se desmanchavam. Saíram apressados. Pra meu espanto o pássaro abandonava o palco, andando rapidamente pela galeria. Ia deixando a praça e, de alguma maneira, ia se desfazendo aos poucos a magia. Andava agora como um homem, o passo acelerado, de novo na corrente do tempo.
Do centro da praça onde eu estava, acompanhei instintivamente o movimento. Fui saindo também, na mesma direção, apenas a alguns metros de distância deles. Já era noite fechada. As luzes que iluminavam a cidade eram amareladas. Nas ruas vizinhas, a multidão da praça subitamente se rarefazia. Veneza é uma cidade labiríntica. Pela manhã, o caminho da estação de trem até a Piazza San Marco tinha me parecido excessivamente sinalizado. Os turistas eram veementemente desencorajados a aventurar-se em caminhos alternativos. Agora eu entendia. O homem-pássaro enveredou com a moça por uma rua estreita de uma Veneza íntima, familiar e sombria. Eu os seguia poucos metros atrás.
Pensei na noite, na hora, nos meus amigos que voltariam pra praça pra me reencontrar. Pensei na volta pra Verona, nos horários de saída dos trens. Temia me perder nas vielas sinuosas e não conseguir refazer o caminho de volta à praça, mas seguia andando na esperança de que o homem parasse ou entrasse em alguma casa. Fui deixando crescer a distância entre eles e eu. Torci para que ao menos ele tirasse a máscara. Fui desacelerando pouco a pouco. Na rua vazia só se escutavam nossos passos. Parei finalmente e no instante em que desisti de conhecer aquele homem, ele, já irremediavelmente longe, tirou com a mão direita a máscara. Não gritei pelo homem para que ele se virasse. Não vi seu rosto. Ele de costas era ainda o mesmo pássaro. A máscara na mão, branca e fantasmática, olhava em minha direção.
Voltei à praça e regressamos a Verona. Na manhã seguinte meus amigos seguiram para Roma, continuando a nossa programação. Eu voltei a Veneza, sem saber se conseguiria me encontrar depois, novamente, com meu grupo de amigos. Já na chegada, na estação de trem, fui informada de uma greve de ferroviários que interromperia o serviço logo no inicio da tarde. Corri pelas ruas da cidade. Tentei algum atalho que me fizesse chegar mais rápido na praça. Me perdi, mas consegui chegar finalmente.
Manhã de Carnaval na Piazza San Marco. Poucos foliões se apresentavam. Procurei o homem em outras fantasias. Ia reparando nos gestos, nos movimentos, buscando os olhos pequenos por trás de máscaras coloridas. O tempo passou rapidamente. Não havia hospedagem em Veneza, e temendo vagar a noite toda e sozinha, tomei o caminho de volta, pra pegar o último trem daquele dia. Fui calculando minuciosamente o tempo. No meio do caminho, parei num quiosque de máscaras e busquei aquela pela qual tinha me apaixonado. Não achei. Não daquele tamanho, não com desenho idêntico. Encontrei, no entanto, uma menor, também de porcelana, com o mesmo motivo, mais simples, mas não menos bonita. De um lado um sorriso, do outro uma lágrima. “Você tem os olhos tristes”, lembrei. Comprei a máscara –que mais de vinte anos depois ainda conservo– e corri menos triste para a estação de trem, com um sorriso e uma lágrima. Encontrei meus amigos em Roma, por um mero acaso, e a viagem continuou conforme o previsto.
Voltei a Barcelona, onde vivia, e o primeiro gesto foi revelar os filmes da viagem. De tempos em tempos voltava a ver aquelas fotografias. Rever aquela fantasia me transportava sempre para aquele momento de magia. Contei poucas vezes essa história, esqueci dela algumas épocas de minha vida. Muitos anos se passaram e as fotos se perderam, ironicamente, com negativos e tudo, em um roubo quando eu me mudava pra São Paulo. Senti muito essa perda. Mais do que todos os livros, discos, filmes, alguma jóia e outros pertences que um ladrão bobo carregou em duas malas trancadas com cadeados. Tem uma época da vida em que a gente quer que a fantasia se torne realidade. Tem outra em que a gente precisa que a realidade nos mostre alguma fantasia.
Um tempo depois do roubo, dois ou três anos, talvez mais, não lembro, um dia sentada na sala de espera de um consultório médico, abri, por falta de opções mais interessantes, uma edição da revista Caras. Não sei qual, especificamente, mas imagino que seria a do mês de Março. Folheei impacientemente as fotos, as caras, as poses dos famosos. Antes de fechar a revista, literalmente na última página, antes da contracapa, numa sessão chamada Foco, encontrei esta imagem: o homem-pássaro, ele mesmo, suas plumas, seus olhos pequenos a me fitar desaforadamente. Nem preciso dizer que arranquei a página inteira da revista num descuido da atendente, dobrei rapidamente e guardei para sempre, recuperando, por mais um evento misterioso ou coincidente, aquela parte da minha vida. 
Dizem por aqui que o de Salvador é o melhor Carnaval do mundo. Outros dizem que é o do Rio ou o de Recife. São alegres, sem dúvida, festivos e multicoloridos como aquela fantasia. Mas Carnaval pra mim talvez não seja, necessariamente, sinônimo só de alegria, mas principalmente de magia, encanto, feitiço. Em todo caso, penso que o melhor Carnaval do mundo será aquele em que com você aconteça algo daquilo que aconteceu comigo em Veneza. 

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