12 outubro 2011

Será que dá pra lavar geléia?

Quem me conhece sabe que eu sou de dormir tarde. E às vezes, momentos antes de ir pra cama, já de madrugada, bate aquela fominha, aquele buraco no estômago. Nestes momentos como qualquer coisa, o que estiver mais fácil, que não dê trabalho e que não atrapalhe o sono. Como de pé na cozinha, na bancada, na beirada da pia. É rápido: uma maçã ou um iogurte, às vezes um nescau quente com alguma bolacha. Dia desses eu tinha dois biscoitos sabor limão e um resto de geléia de pêssego que não chegava a encher uma colherinha de café. Era perfeito: meia colheradinha pra cada biscoito. Mas a geléia é escorregadia. O biscoito era fininho. E eu já sonolenta coloquei a geléia de qualquer jeito em cima do primeiro biscoitinho. Ela deslizou e pum, caiu dentro da pia da cozinha, que infelizmente não estava vazia, mas cheia de panelas e pratos. Eu não podia acreditar. Fiquei olhando pra ela e lamentando alto, com aquele chorinho que a gente faz sem chorar. No pote de geléia restava agora menos de meia colherinha de café, só dava pra um dos dois biscoitinhos de limão, que casam perfeitamente com o sabor leve do pêssego. Tinha doce de leite também na geladeira, mas antes de partir pra outro sabor bem diferente, voltei a olhar pra dentro da pia e me perguntei: será que dá pra lavar geléia?
Sei que pra cada pessoa é diferente, mas pra mim sempre foi muito difícil romper com aqueles padrões de comportamento ou condicionamentos que estão mais grudados na gente, colados na pele, tanto que normalmente a gente nem consegue enxergá-los direito. Me refiro a bobagens como, por exemplo, tomar a cerveja toda, mesmo que esteja quente, e a uma infinidade de outros pequenos e perversos condicionamentos diários, de que nem consigo me lembrar direito. Nos últimos anos tenho estado mais atenta a isso, e essa atenção tem me mostrado o quanto é difícil ser livre. Não apenas libertar-nos de repressores ou censores externos, mas perceber o quanto nos censuramos e reprimimos cotidianamente, nos atos mais impensados, nas coisas mais ínfimas, nos automatismos constantes. Condicionamentos e padrões são correntes invisíveis que a gente carrega pra todos os lados. Mesmo nus permanecemos com algum tipo de roupagem, de atadura. E ela se confunde com a pele, se mimetiza, é um hospedeiro nocivo e silencioso. Sinto que é preciso lutar também contra a prisão que isso representa. É difícil. É árduo. Mas ir se libertando aos poucos desses condicionamentos vai deixando a gente mais solto, menos mecânico, mais criativo e aberto a novas possibilidades. Pode ser útil em alguns momentos, pode ser divertido, pode ser ridículo ou bizarro, mas pode ser muito interessante tomar a contramão do pensamento, pensar fora dos trilhos, ver aquilo de sempre de um modo tão diferente.
Uma vez soltei um peido na seção de perfumes de um freeshop (ia dizer um pum, que fica mais delicado, mas aquilo não foi um pum, foi um peido mesmo). Não fez barulho. Mas subiu como uma alma podre vinda dos quintos dos infernos. Existe lugar mais apropriado pra soltar um peido bem fedorento? Pense: está todo mundo de férias, relaxado, pesquisando odores, aspirando, cheirando, escolhendo entre Calvin Klein, Dior, Chanel e Yves Saint Laurent, olfato aguçado, narinas abertas, atentas às pequenas sutilezas. Tive de ser uma grande atriz naquele momento. Saí de perto enquanto ainda não se sentia o intruso, mas não fui muito longe, apenas alguns metros, pra observar a reação dos outros compradores. Continuei experimentando perfumes (era uma seção enorme e super variada) enquanto a carniça tomava conta do ambiente (estava há três dias sem ir ao banheiro, coisas de viagem) e precisei de muito autocontrole pra não explodir na risada, coisa que fiz cinco minutos depois, na seção ao lado. E coisa que faço cada vez que me lembro da cara de um homem que foi levantando aos poucos a cabeça sem conseguir acreditar no que estava acontecendo e tentando imaginar quem poderia ser o autor de algo tão desaforado e virulento: nunca uma moça jovem, branca, bem vestida, magra e lívida como eu naquele momento. Devo confessar que foi irresistível, a ocasião perfeita, um convite. E ter me permitido algo tão vil foi impagável. Uma manifestação de rebeldia, quase um atentado: contra o consumismo, contra os grã-finos, os importados, os desodorizantes de ambientes e o papel-higiênico perfumado. Pequena vingança. Ridícula até. Mas ser livre é um processo lento e longo, e provavelmente nunca acabe.
Releio o último parágrafo e sinto vergonha de publicá-lo. Penso em outro modo de contar o fato, sem perder a classe. Relaxo, sigo em frente. A vergonha é mais uma daquelas correntes, mais um esparadrapo na boca da gente. Lembro agora da história, que não posso deixar de contar, de um músico baiano louco e brilhante que, indo pela enésima vez cobrar por um trabalho já terminado, quando lhe disseram que ainda não tinha saído o pagamento começou a latir como um cão danado. Nem preciso contar que o cheque apareceu naquele mesmo instante.
Quanto à geléia: sim, enxaguei-a em água corrente, coloquei em cima do biscoito e abocanhei-o rapidamente, rindo e me sentindo um pouquinho menos prisioneira de hábitos e padrões de pensamento.

09 outubro 2011

Uma flor sem adjetivo


Meu vizinho do apartamento de cima viajou para a Alemanha por uns tempos. Antes que se mudasse, subi um dia e me ofereci para cuidar as plantas que tivesse, para comprar sua geladeira ou algum móvel de que ele precisasse se desfazer. Dias depois encontrei do lado de fora da porta de entrada, alinhados junto à parede do hall, três vasos de plástico. O maior deles tinha uma planta mirrada, de folhas compridas e carnudas, sem graça e maltratada, e, em volta dela, uns pezinhos de erva daninha que nasce sem ser convidada em qualquer terra. Em outro vaso, quase de mesmo tamanho e forma, havia apenas terra ressecada e cinzenta. O último era pequeno e com uma pequena planta dentro, de folhas miúdas e gordas, que resistiu à falta de água e alimento. Ri surpreendida com aquele quadro desolador e árido, bem diferente do que eu tinha imaginado. Duvidei entre jogar no lixo ou entrar as plantas e aproveitar talvez a terra ou os vasos para enfeitar, com mudas novas, o belo balcão que tem do lado de fora da grande janela de vidro da minha sala. Coloquei-as ali, junto à Aloe Vera enorme e selvagem que herdei da antiga moradora da casa, e comecei a molhar tudo de vez em quando na esperança de que se recuperassem ou que da terra brotasse algo vindo de alguma raiz oculta mas ainda viva. Com a proximidade da primavera e os primeiros dias de calor, novas folhas carnudas brotaram nos dois vasos, sem que isso mudasse significativamente o cenário desagradável. Ontem pela manhã, no entanto, assim que saí do quarto, os olhos apertados ainda pelo contraste com a claridade da sala, chamou minha atenção uma luz estranha em meio ao verde das ramas do jasmim do prédio que se enroscam na grade do balcão: um ponto rosa estridente dentro do pequeno vaso. Disse estridente por não encontrar palavra mais adequada para descrever aquele efeito que causavam certas estampas ou listras em televisão de antigamente, em que se perdiam os contornos e as cores vibravam, incomodando os olhos da gente. Esperei que a vista se acostumasse à luminosidade e então me aproximei intrigada. Entre as folhinhas gordas da planta pequena, sim, uma flor mínima, em forma de espanador, de um centímetro apenas de diâmetro, pétalas finas e abundantes. Uma estridência apenas, uma surpresa, um grito no meio do verde nada, uma flor quase sem adjetivos, mas de repente um adjetivo na minha sala.