01 abril 2011

Instável


Minha avó tinha vertigem quando olhava o céu. Precisava segurar na mão de alguém pra conseguir ver um eclipse, um fiapinho de lua – como diz minha mãe e meu sobrinho repete – ou uma noite cheia de estrelas. Essa história sempre me fez sentir muito perto dela.
Duas notícias, ontem, na página de abertura do meu provedor de Internet, chamaram minha atenção especialmente: uma animação sobre a diferença de gravidade em diferentes lugares do planeta Terra e uma ilustração que mostra as marcas – gigantescas – deixadas por meteoros em Saturno e em Júpiter. Vivemos sobre a casca de um corpo líquido e ardente. Andamos sobre esta casca curva como se fosse plana, como se fosse firme, sólida, e, principalmente, eterna. Planejamos o que vamos fazer na próxima meia hora, no dia seguinte, daqui a seis meses, dez anos, e na nossa velhice. Procuramos estabilidade em todas as instâncias possíveis: no emprego concursado, no casamento pra sempre, na casa própria, na assinatura do jornal, no calendário, na poupança, na previdência. Mas de vez em quando, fumamos um bom baseado, bebemos ou metemos pra dentro alguma química que faça o estável ficar leve ou fortemente abalado. Antídoto pra um veneno que a gente mesmo inventa. Caminhar sobre a casca curva e olhar o céu vertiginoso não deveria ser suficiente? Deve ser que a gente anda cada vez menos na rua e quando o faz, só olha pra frente.
Está bem, eu entendo: a instabilidade permanente pode ser incômoda e certamente não interessa a muita gente, especialmente aos poderosos, que acabam fazendo da estabilidade alheia fonte de poder e riqueza. Mas a noite pode se precipitar sobre a nossa cabeça na forma de um meteoro e há lugares no planeta em que somos mais leves, mais soltos, mais voadores! Isso não conta?
Muitas crianças, quando começam a adquirir maior consciência do mundo à sua volta, desenvolvem um certo pavor da hora de dormir, querem aproveitar cada segundo e muitas vezes só se entregam finalmente ao sono depois de muito choro. Essas mesmas crianças, mais ou menos na mesma idade, procuram, enquanto despertas, lugares altos, saltos, quedas, de verdade ou de mentira, giram, giram e giram, repetidamente, pra sentir o barato da tontura. Impossível não pensar na expressão “carpe diem”, já tão desgastada pela efusão bem-intencionada (nem o inferno aguenta mais!) de powerpoints de auto-ajuda. Prefiro então o que disse Rainer Werner Fassbinder, quando lhe perguntaram porque quase não dormia: dormirei quando estiver morto. Tem que ser meio criança ou meio artista meio louco pra sentir essa vertigem da vida?
Cada vez que eu tive algum desespero ou uma tristeza profunda, me aferrei à consciência de que de nada adianta sofrer se de um segundo para o outro tudo pode desaparecer, sem que sequer tenhamos tempo de ser conscientes disso.
Minha avó sentia vertigem quando olhava o céu. Acho que herdei dela este sentido estranho de instabilidade. Isso me aproximou desta avó que morreu muitos anos antes de que eu nascesse. Essa vertigem, esse gesto de segurar na mão de alguém para enfrentar o desconhecido. Hoje, pensando nos loucos e nas crianças, nos meteoros e nas diferentes forças de gravidade, me pergunto se minha avó, mesmo com medo, não gostava de olhar, sempre que podia, as estrelas em permanente fuga que eu imagino que ela via.

3 comentários:

  1. A bela foto é do meu amigo Fernando Cohen, que adquiriu o hábito – que logo virou vício – de sair a pé pelas ruas de São Paulo todo dia, “com uma câmera na mão e nenhuma idéia na cabeça”, nas palavras dele mesmo.

    ResponderExcluir
  2. Mari:
    Li esse texto no dia em que foi publicado e fiquei com uma sensação estranha, de não saber o que dizer nem o que pensar. Hoje li de novo. Entendi a sensação: sempre vivi a instabilidade, você sabe; no trabalho, principalmente, mas também em outros aspectos dessa vida. Mas mesmo vivendo a instabilidade, e não tendo nada do que me queixar, passei muito tempo buscando a estabilidade: a casa própria, o casamento sem brigas, o emprego fixo, embora fosse no dia-a-dia tendo atitudes de afastamento disso tudo. Esse texto veio me dar um toque de que a "vida instável" em que a vertigem pode acontecer no próximo passo é a vida que eu sempre quis viver. Desconsertei e voltei prá consertar. Bjs!

    ResponderExcluir
  3. você é uma pessoa de uma certa sorte: teve uma avó que lhe ensinou a falar e outra que lhe ensinou a olhar o céu com certa desconfiança. As duas te deram dois tipos quase opostos de estranhamento.

    ResponderExcluir