08 março 2011

O melhor Carnaval do mundo


Veio retrocedendo em minha direção. Eu estava protegida por uma coluna imensa, meio escondida atrás dela. Quando aquela figura multicolorida chegou ao meu lado, virou-se de repente, apoiou os dois braços teatralmente na coluna e me prendeu entre eles. Seu rosto ficou, pela primeira vez, a um palmo do meu. Comecei a sentir o barulho das máquinas fotográficas e a luz dos flashes em nossa direção. Daquela distância eu podia ver bem os olhos por trás da máscara toda branca. Eram castanhos, pequenos e se enfiavam desaforadamente nos meus.
Eu tinha chegado em Veneza na manhã daquele dia. Tinha percorrido com meu grupo de amigos os principais pontos, os canais e as pontes, seguindo a maré de turistas que escoava organizadamente e desembocava na Piazza San Marco. No trajeto até lá uma única coisa tinha me chamado a atenção especialmente: uma máscara de porcelana que representava em preto e branco um rosto feminino dividido ao meio: de um lado um sorriso, do outro uma lágrima. Cheguei a perguntar o preço, mas como tudo na Europa, para alguém que viajava com mochila nas costas, comendo sanduiche e dormindo em albergue por dois meses, era proibitivo. Deixei o quiosque de máscaras pressionada pelos amigos, mas sentindo que me apaixonara pela figura delicada, sentindo que me arrependeria por não garantir que fosse minha.
Em San Marco esse pesar se esvaneceu. Tudo naquele lugar era deslumbrante. O sonho de Veneza se realizava pra mim. Corri para a Ponte dos Suspiros e tive ali minha primeira decepção: era linda, mas não tanto como a que crescera em minha imaginação desde os anos da infância. A praça, no entanto, com a qual nunca tinha sonhado, era uma descoberta fascinante. Fazia frio. Vínhamos de Verona, onde tínhamos conseguido lugar para passar a noite, e já nos aproximávamos do meio-dia. Meus amigos queriam seguir adiante, explorar outros pontos da cidade. Eu estava enfeitiçada. Nos separamos pela primeira vez em toda a viagem, fiquei só, sentada na base de uma estátua à entrada da praça, com o mar e as gôndolas atrás de mim, comendo meu sanduiche enquanto olhava sucederem-se as fantasias, as máscaras, os visitantes.
O Carnaval de Veneza é teatral e envolvente. Os foliões trabalham o ano inteiro em suas roupas e máscaras perfeitas, depois as exibem suntuosamente. Não há música, não se grita nem se dança. Ouvem-se principalmente passos, vozes, pombas, máquinas fotográficas e aplausos. Tudo é pausado e estudado: as poses, os gestos, as figuras. O frio, a leve bruma, a expressão congelada das máscaras: o tempo se suspende um pouco.
Terminei meu sanduiche e fui voltando pra dentro da praça. No caminho avistei, a uma distância de uns dez metros, duas figuras que se apresentavam juntas ante dezenas de fotógrafos e turistas. Estes formavam um semicírculo que funcionava como a plateia de um teatro para um palco imaginário entre duas imensas colunas, onde uma figura fantasiada de música e outra fantasiada de algum bicho indescritível se exibiam. Parei atrás dessa plateia e fiquei ali, não sei quanto tempo, tentando entender a fantasia. Tirei algumas fotos e reparei nos movimentos daquela ave estranha: eram leves e longos, um passo ou um gesto emendando sempre no seguinte, sem cortes, sem rupturas. A plumagem colorida, feita de losangos sobrepostos, não deixava ver nada do corpo. Era alto e grande demais pra ser o de uma mulher, leve e delicado demais para ser o de um homem. Procurei as mãos e os pés e a equação se repetia: grandes e fortes, leves e doces. Não sei quanto tempo fiquei ali. As duas figuras interagiam. Os fotógrafos iam e vinham, de tal maneira que num momento dado fiquei, sem perceber, na primeira fila do teatro improvisado. A figura vestida de ave soltou-se um pouco do palco, veio andando de costas, rompeu a linha imaginária da quarta parede, virou-se de repente e abriu pela primeira vez as imensas asas para o deleite da plateia e me olhou fixamente. Ficou assim alguns segundos. O ruído das máquinas fotográficas era ensurdecedor. Eu já nem me lembrava da minha. O pássaro ria, por detrás da máscara, com o sorriso nos olhos, ele ria de mim, só pra mim. Fiquei envergonhada e escorreguei pra dentro da plateia e depois pra fora dela. Contornei o grupo e me escondi atrás de uma das colunas, num lugar incompreensivelmente vazio. Ia fazer finalmente uma boa foto, levar uma lembrança daquela figura de todo inalcansável: pássaro imaginário, dançarino assexuado e atrevido.
Preparei a câmera. A ave estava de novo de costas, no extremo do palco, na outra coluna, ao lado da música, uma bela mulher, de vestido roxo, pequenos instrumentos e notas dourados pendurados por todo o corpo. Fiquei meio escondida, a máquina preparada, esperando que a figura se virasse um pouco e ficasse de frente ou de lado. Em vez disso, ela veio retrocedendo em minha direção, sempre de costas pra mim. Fui escorregando instintivamente o corpo ao redor da coluna gigantesca, mas ao chegar ao meu lado, ela virou-se de repente e me olhou. Apoiou rapidamente os dois braços na coluna prendendo-me. Fiquei petrificada, sentindo os olhos da platéia e o hálito intenso do homem por trás da máscara. E ele disse  numa voz grave: “Parla italiano?”. Espanhol e português, respondi eu em algum idioma que não lembro. Ele fez um gesto de desconsolo com a cabeça e continuou pausadamente: “Tu hai gli occhi triste”, e nos olhos pequenos e penetrantes eu vi que ele se importava com que eu realmente entendesse o que ele tinha dito. Eu entendi, mas não respondi nada. Acho que sorri. Ele insistiu ainda uma vez, arriscando um espanhol atrapalhado. Depois me soltou plasticamente e voltou ao palco. Eu aproveitei pra fugir.
Sentei num banco a vinte metros da cena. Observei um instante e constatei que ninguém me olhava mais, nem tirava mais fotos. Ali naquele banco chorei longamente. Um choro profundo, sentido e desconhecido, de uma tristeza que um estranho detrás de uma máscara tinha revelado. Alguns instantes depois, levantei os olhos e vi, no palco onde tudo tinha começado, que o homem na fantasia de pássaro perguntava algo à sua companheira de cena. Ela nada respondeu, mas levantou lentamente o braço e apontou em minha direção. Ambos me olhavam e eu fugi mais uma vez.
(continua)

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