23 março 2011

Bullying, no meu caso.

Palavra da moda pra assunto antigo, todo mundo sabe disso. O bullying é mais velho que andar em pé, ou talvez até mais do que isso. Como agora está na moda, todo mundo tem se pronunciado a respeito: médicos, educadores, jornalistas, pais, alunos, psicólogos, colunistas de todo tipo em todo tipo de midia. Eu, certamente, não tenho muito a acrescentar, exceto talvez pra somar um depoimento aos milhões que andam circulando por aí.
Fui vítima do famoso escárnio (não entendo porque a adoção tão imediata de um termo tão inacessível para os que não são falantes de inglês; talvez pra dar um toque de novidade ou pra circunscrever o assunto a uma classe elitizada), dizia eu, vítima do famoso escárnio quando era ainda bem pequena, lá pela 2ª ou 3ª série do primeiro grau. Teria eu, portanto, 7 ou 8 anos, plena infância ainda, quando um dia uma colega me viu, durante uma aula, tirando meleca com o dedo do nariz e, pior ainda, colocando o dedo com meleca na boca. Não era a primeira vez que eu fazia isso. A meleca é salgadinha, gostosa até. Me refiro, obviamente, àquela meleca molinha, o muco, aquele que as crianças resfriadas lambem dos lábios quando escorre pra boca, não à meleca dura e ressecada com que a gente faz bolotinhas. Não é muito diferente da saliva ou de algum pigarro que a gente engole numa boa e ninguém fala nada nem fica com nojo.
Naquele dia, uma moça de sobrenome fancy (pra ser coerente com bullying), filha do dono de uma das maiores construtoras da época, me viu comendo meleca, virou-se imediatamente pro colega do lado e cochichou com cara de nojo. A notícia se espalhou rapidamente e em pouco tempo eu estava completamente isolada de toda a escola. Não, eu não estou exagerando. Em poucos dias ninguém tocava em nada que eu tivesse tocado, ou pior, limpava antes com um pano ou lavava com sabão. Não me deixavam jogar baleado (ou queimada, em São Paulo), ou saiam do jogo fingindo náuseas assim que eu encostava na bola. Pior do que isso era a falta quase total de contato físico. E claro que eu já me apaixonava pelo menino mais bonito do colégio, que neste caso, era amigo íntimo da moça de sobrenome rico que me escolheu pra Cristo. Pra minha sorte, eu tinha duas amigas de ferro: Bethânia, e, principalmente, Ana Cláudia, que ficaram do meu lado, me apoiaram e acolheram, sendo vítimas elas também, por tabela, das arestas do escárnio. Devo a elas e a uma professora de português ter sobrevivido à rejeição geral daquela época.
Meus pais foram chamados pela coordenação pedagógica, mas só entenderam de fato a gravidade do que tinha acontecido quase trinta anos depois, quando eu contei a eles. Eu não queria mais ir à escola, mas não tinha jeito. Ficava meio escondida com as minhas amigas, brincando nos brinquedos que ninguém queria, longe de todos os outros. Muitas vezes eu não saía no recreio, ficava na sala estudando o assunto da aula seguinte. Foi assim que encontrei minha redenção. Não lembro quantas vezes na semana, mas umas duas com certeza, tínhamos aula de português depois do recreio, e a professora sempre começava pedindo a algum aluno que lesse em voz alta algum texto. Ainda tropeçávamos todos na pontuação, e as leituras eram quase sempre motivo de risos e gozação. Até que um dia ela pediu que eu lesse. Foi a leitura mais lisa e perfeita, sem erros, todas as frases terminando com excelente entonação. Eu já tinha treinado a leitura do texto umas duas ou três vezes, minutos antes, durante o descanso. Daí pra frente virei modelo, era o exemplo a ser seguido, sempre relembrado pela professora, de quem nunca vou esquecer. Nasceu ali minha relação com o texto, com a língua, com a literatura. Relação íntima de profunda gratidão. Anos mais tarde, numa sessão de análise, já esquecida do episódio da infância, recalcado e trancafiado nos confins da consciência, me dei conta de que fui salva pela literatura, a quem até hoje tento retribuir e honrar, e que, em todo caso, nunca mais saiu da minha vida (ou será que eu ainda estou precisando de ajuda?).
Aquilo durou quase dois anos. Claro que não com a mesma intensidade, mas mesmo no final, alguém sempre fazia questão de me lembrar do assunto. Só terminou realmente quando mudei de escola, pra cursar o ginásio.
Eu poderia falar horas sobre este assunto. De fato o fiz, mas eu pagava na época pra que me escutassem, o que significa, talvez, em última instância, que pra quem me lê agora, de graça, poderia não ser lá muito interessante. Arrisco, então, só algumas reflexões, de leve (prometo soltar só os cachorros mais mansos).
Acho artificial toda essa badalação a respeito. Acho, sem ter formação específica pra falar com propriedade, que o escárnio (ou bullying, para meus leitores fancier) é uma prática inerente à dinâmica de grupos, e que se torna mais cruel quando somos crianças, quando ainda não temos plenamente desenvolvidos os freios necessários ao convívio em sociedade (e que muitos de nós, ao ficar mais velhos, procuramos eliminar das nossas vidas pra voltar a ser um pouco mais verdadeiros e espontâneos).
E acho que vai parecer sofisma ou imprudência temerária o que vou dizer agora: que agradeço ter sido vítima daquele escárnio. Não pelo que me trouxe de ensinamentos, nem mesmo pela relação maravilhosa com a literatura, que isso deflagrou em minha vida. Agradeço ter sido vitima de bullying porque de todos os papéis que eu poderia ocupar naquela história ele é o menos perverso. Não troco ter sido a vítima, por ser o agressor, nem por ser ‘apenas’ cúmplice, nem muito menos por ser parte da grande maioria de maria-vai-com-as-outras. Não há imparcialidade no convívio social; bem olhado, todos nós vamos ocupando algum desses papéis em cada caso de escárnio (próprio ou alheio) ao longo de nossas vidas. Talvez o único papel melhor que o de vítima fosse o de amiga da vítima, o de Bethânia ou Ana Cláudia, neste caso; mas para estar no lugar delas eu precisaria trocar de papel com uma de minhas amigas, desejando, portanto, a alguma delas, a rejeição e o isolamento que tanto me marcaram.

18 março 2011

O melhor Carnaval do mundo (2ª parte)



Deambulei entre os visitantes e as revoadas de pombos. Nos contornos da praça, emoldurados pelas galerias e separados da multidão por uma pequena escadaria, outros foliões encenavam suas fantasias. Em volta deles, centenas de fotógrafos e turistas. Fiquei imersa no meio destes, disfarçada, igual, mas me sentindo diferente. Tinha atravessado uma cortina, fina e transparente, e deslizado pra dentro de um conto. Nada mais parecia real. Meu antigo sonho de Veneza era romântico, como o de tantas meninas e adolescentes. Mágico, sim, mas de uma magia tola, ou, em todo caso, recorrente. Não tinha nada a ver com aquilo que estava acontecendo. Deambulei, eu disse, entre visitantes, fotógrafos e pombos, circulando sempre, andando, um ponto em movimento é sempre mais difícil de localizar. Passei outra vez, cuidadosamente, diante daquele lugar, na entrada da praça, entre as duas colunas, mas eles já não estavam lá. Voltei para o centro da praça. Fotografei outras máscaras e personagens, vaguei, não lembro por quanto tempo. A tarde ainda estava alta. Foi somente quando ela começou a cair, úmida e cinza, pincelada com as cores fortes das fantasias como um quadro expressionista, que voltei a ver o homem-pássaro.
Ele estava no alto de um escadaria e desta vez se apresentava sozinho. Em volta dele, em semicírculo, outra vez a multidão se revezava pra chegar perto e tirar fotos. Me abaixei instintivamente atrás da cortina de gente, pra não ser vista. Rodeei o semicírculo até um ponto mais próximo. Subi um ou dois degraus apenas e observei, entre cabeças e câmeras que se mexiam em minha frente, as poses, os gestos, os lentos movimentos que ele fazia lá em cima.
Era belo o homem que agora eu intuía debaixo da fantasia. Belo e poderoso como todo mistério. Mãos fortes sob luvas branquíssimas, como as de um mimo. Um homem, agora eu sabia. Sem rosto, sem corpo, sem nome. Dele eu só conhecia os olhos pequenos por trás da máscara branca e a voz grave que chegou até mim junto ao hálito e o calor intensos que exalavam de dentro da fantasia. Apenas isso, e a habilidade pra me tirar de dentro da plateia e me trazer pra cima do palco. Era alto e magro, talvez atlético, corpo de dançarino. Cabelos castanhos como os olhos, eu diria, e algum grisalho nas têmporas, com uma onda teimosa na franja, talvez do lado direito. Boca estreita e nariz acentuado, italiano, impossível imaginar outro tipo. Tez morena, eu sentia, sem ter visto em nenhum momento sequer um centímetro de pele debaixo de todas as plumas da fantasia. Era pura imaginação minha, necessidade de compor o homem que eu tinha descoberto.
Preparei a máquina fotográfica e pensei num modo de chegar mais perto. Ainda não tinha um bom registro. Fui avançando muito lentamente entre os outros turistas, quando notei que ele vinha descendo alguns degraus da escadaria. Parei pra esperar o momento certo, avancei o filme na máquina e deixei o dedo indicador pronto pra apertar o botão e fazer a fotografia. O homem parou a pouco mais de um metro, virou-se de repente e me olhou outra vez nos olhos. Repetiu a pose estática, esperando que eu, finalmente, registrasse o momento. Fez de propósito. Em seu olhar havia outra vez um sorriso. Eu vacilei um instante, mas mesmo envergonhada e sem conseguir olhar pelo visor da câmera apertei o botão e tirei a foto.
Era a terceira vez que ele me descobria. Com gestos lentos e cuidadosos ele desarmou a pose estática e voltou para a galeria, lá no alto, já sob vários flashes agora que a noite escurecia a praça. Eu retrocedi um pouco e continuei, de longe, olhando a cena. Dessa distância mais cômoda pude ver, alguns instantes depois, que uma moça jovem, sem fantasia nem máscara, se aproximava do pássaro e cochichava em seu ouvido. Ele fez algumas perguntas que ela respondeu assinalando com o dedo em direção oposta à minha. O gesto suspenso dos braços, a pose, a cena se desmanchavam. Saíram apressados. Pra meu espanto o pássaro abandonava o palco, andando rapidamente pela galeria. Ia deixando a praça e, de alguma maneira, ia se desfazendo aos poucos a magia. Andava agora como um homem, o passo acelerado, de novo na corrente do tempo.
Do centro da praça onde eu estava, acompanhei instintivamente o movimento. Fui saindo também, na mesma direção, apenas a alguns metros de distância deles. Já era noite fechada. As luzes que iluminavam a cidade eram amareladas. Nas ruas vizinhas, a multidão da praça subitamente se rarefazia. Veneza é uma cidade labiríntica. Pela manhã, o caminho da estação de trem até a Piazza San Marco tinha me parecido excessivamente sinalizado. Os turistas eram veementemente desencorajados a aventurar-se em caminhos alternativos. Agora eu entendia. O homem-pássaro enveredou com a moça por uma rua estreita de uma Veneza íntima, familiar e sombria. Eu os seguia poucos metros atrás.
Pensei na noite, na hora, nos meus amigos que voltariam pra praça pra me reencontrar. Pensei na volta pra Verona, nos horários de saída dos trens. Temia me perder nas vielas sinuosas e não conseguir refazer o caminho de volta à praça, mas seguia andando na esperança de que o homem parasse ou entrasse em alguma casa. Fui deixando crescer a distância entre eles e eu. Torci para que ao menos ele tirasse a máscara. Fui desacelerando pouco a pouco. Na rua vazia só se escutavam nossos passos. Parei finalmente e no instante em que desisti de conhecer aquele homem, ele, já irremediavelmente longe, tirou com a mão direita a máscara. Não gritei pelo homem para que ele se virasse. Não vi seu rosto. Ele de costas era ainda o mesmo pássaro. A máscara na mão, branca e fantasmática, olhava em minha direção.
Voltei à praça e regressamos a Verona. Na manhã seguinte meus amigos seguiram para Roma, continuando a nossa programação. Eu voltei a Veneza, sem saber se conseguiria me encontrar depois, novamente, com meu grupo de amigos. Já na chegada, na estação de trem, fui informada de uma greve de ferroviários que interromperia o serviço logo no inicio da tarde. Corri pelas ruas da cidade. Tentei algum atalho que me fizesse chegar mais rápido na praça. Me perdi, mas consegui chegar finalmente.
Manhã de Carnaval na Piazza San Marco. Poucos foliões se apresentavam. Procurei o homem em outras fantasias. Ia reparando nos gestos, nos movimentos, buscando os olhos pequenos por trás de máscaras coloridas. O tempo passou rapidamente. Não havia hospedagem em Veneza, e temendo vagar a noite toda e sozinha, tomei o caminho de volta, pra pegar o último trem daquele dia. Fui calculando minuciosamente o tempo. No meio do caminho, parei num quiosque de máscaras e busquei aquela pela qual tinha me apaixonado. Não achei. Não daquele tamanho, não com desenho idêntico. Encontrei, no entanto, uma menor, também de porcelana, com o mesmo motivo, mais simples, mas não menos bonita. De um lado um sorriso, do outro uma lágrima. “Você tem os olhos tristes”, lembrei. Comprei a máscara –que mais de vinte anos depois ainda conservo– e corri menos triste para a estação de trem, com um sorriso e uma lágrima. Encontrei meus amigos em Roma, por um mero acaso, e a viagem continuou conforme o previsto.
Voltei a Barcelona, onde vivia, e o primeiro gesto foi revelar os filmes da viagem. De tempos em tempos voltava a ver aquelas fotografias. Rever aquela fantasia me transportava sempre para aquele momento de magia. Contei poucas vezes essa história, esqueci dela algumas épocas de minha vida. Muitos anos se passaram e as fotos se perderam, ironicamente, com negativos e tudo, em um roubo quando eu me mudava pra São Paulo. Senti muito essa perda. Mais do que todos os livros, discos, filmes, alguma jóia e outros pertences que um ladrão bobo carregou em duas malas trancadas com cadeados. Tem uma época da vida em que a gente quer que a fantasia se torne realidade. Tem outra em que a gente precisa que a realidade nos mostre alguma fantasia.
Um tempo depois do roubo, dois ou três anos, talvez mais, não lembro, um dia sentada na sala de espera de um consultório médico, abri, por falta de opções mais interessantes, uma edição da revista Caras. Não sei qual, especificamente, mas imagino que seria a do mês de Março. Folheei impacientemente as fotos, as caras, as poses dos famosos. Antes de fechar a revista, literalmente na última página, antes da contracapa, numa sessão chamada Foco, encontrei esta imagem: o homem-pássaro, ele mesmo, suas plumas, seus olhos pequenos a me fitar desaforadamente. Nem preciso dizer que arranquei a página inteira da revista num descuido da atendente, dobrei rapidamente e guardei para sempre, recuperando, por mais um evento misterioso ou coincidente, aquela parte da minha vida. 
Dizem por aqui que o de Salvador é o melhor Carnaval do mundo. Outros dizem que é o do Rio ou o de Recife. São alegres, sem dúvida, festivos e multicoloridos como aquela fantasia. Mas Carnaval pra mim talvez não seja, necessariamente, sinônimo só de alegria, mas principalmente de magia, encanto, feitiço. Em todo caso, penso que o melhor Carnaval do mundo será aquele em que com você aconteça algo daquilo que aconteceu comigo em Veneza. 

08 março 2011

O melhor Carnaval do mundo


Veio retrocedendo em minha direção. Eu estava protegida por uma coluna imensa, meio escondida atrás dela. Quando aquela figura multicolorida chegou ao meu lado, virou-se de repente, apoiou os dois braços teatralmente na coluna e me prendeu entre eles. Seu rosto ficou, pela primeira vez, a um palmo do meu. Comecei a sentir o barulho das máquinas fotográficas e a luz dos flashes em nossa direção. Daquela distância eu podia ver bem os olhos por trás da máscara toda branca. Eram castanhos, pequenos e se enfiavam desaforadamente nos meus.
Eu tinha chegado em Veneza na manhã daquele dia. Tinha percorrido com meu grupo de amigos os principais pontos, os canais e as pontes, seguindo a maré de turistas que escoava organizadamente e desembocava na Piazza San Marco. No trajeto até lá uma única coisa tinha me chamado a atenção especialmente: uma máscara de porcelana que representava em preto e branco um rosto feminino dividido ao meio: de um lado um sorriso, do outro uma lágrima. Cheguei a perguntar o preço, mas como tudo na Europa, para alguém que viajava com mochila nas costas, comendo sanduiche e dormindo em albergue por dois meses, era proibitivo. Deixei o quiosque de máscaras pressionada pelos amigos, mas sentindo que me apaixonara pela figura delicada, sentindo que me arrependeria por não garantir que fosse minha.
Em San Marco esse pesar se esvaneceu. Tudo naquele lugar era deslumbrante. O sonho de Veneza se realizava pra mim. Corri para a Ponte dos Suspiros e tive ali minha primeira decepção: era linda, mas não tanto como a que crescera em minha imaginação desde os anos da infância. A praça, no entanto, com a qual nunca tinha sonhado, era uma descoberta fascinante. Fazia frio. Vínhamos de Verona, onde tínhamos conseguido lugar para passar a noite, e já nos aproximávamos do meio-dia. Meus amigos queriam seguir adiante, explorar outros pontos da cidade. Eu estava enfeitiçada. Nos separamos pela primeira vez em toda a viagem, fiquei só, sentada na base de uma estátua à entrada da praça, com o mar e as gôndolas atrás de mim, comendo meu sanduiche enquanto olhava sucederem-se as fantasias, as máscaras, os visitantes.
O Carnaval de Veneza é teatral e envolvente. Os foliões trabalham o ano inteiro em suas roupas e máscaras perfeitas, depois as exibem suntuosamente. Não há música, não se grita nem se dança. Ouvem-se principalmente passos, vozes, pombas, máquinas fotográficas e aplausos. Tudo é pausado e estudado: as poses, os gestos, as figuras. O frio, a leve bruma, a expressão congelada das máscaras: o tempo se suspende um pouco.
Terminei meu sanduiche e fui voltando pra dentro da praça. No caminho avistei, a uma distância de uns dez metros, duas figuras que se apresentavam juntas ante dezenas de fotógrafos e turistas. Estes formavam um semicírculo que funcionava como a plateia de um teatro para um palco imaginário entre duas imensas colunas, onde uma figura fantasiada de música e outra fantasiada de algum bicho indescritível se exibiam. Parei atrás dessa plateia e fiquei ali, não sei quanto tempo, tentando entender a fantasia. Tirei algumas fotos e reparei nos movimentos daquela ave estranha: eram leves e longos, um passo ou um gesto emendando sempre no seguinte, sem cortes, sem rupturas. A plumagem colorida, feita de losangos sobrepostos, não deixava ver nada do corpo. Era alto e grande demais pra ser o de uma mulher, leve e delicado demais para ser o de um homem. Procurei as mãos e os pés e a equação se repetia: grandes e fortes, leves e doces. Não sei quanto tempo fiquei ali. As duas figuras interagiam. Os fotógrafos iam e vinham, de tal maneira que num momento dado fiquei, sem perceber, na primeira fila do teatro improvisado. A figura vestida de ave soltou-se um pouco do palco, veio andando de costas, rompeu a linha imaginária da quarta parede, virou-se de repente e abriu pela primeira vez as imensas asas para o deleite da plateia e me olhou fixamente. Ficou assim alguns segundos. O ruído das máquinas fotográficas era ensurdecedor. Eu já nem me lembrava da minha. O pássaro ria, por detrás da máscara, com o sorriso nos olhos, ele ria de mim, só pra mim. Fiquei envergonhada e escorreguei pra dentro da plateia e depois pra fora dela. Contornei o grupo e me escondi atrás de uma das colunas, num lugar incompreensivelmente vazio. Ia fazer finalmente uma boa foto, levar uma lembrança daquela figura de todo inalcansável: pássaro imaginário, dançarino assexuado e atrevido.
Preparei a câmera. A ave estava de novo de costas, no extremo do palco, na outra coluna, ao lado da música, uma bela mulher, de vestido roxo, pequenos instrumentos e notas dourados pendurados por todo o corpo. Fiquei meio escondida, a máquina preparada, esperando que a figura se virasse um pouco e ficasse de frente ou de lado. Em vez disso, ela veio retrocedendo em minha direção, sempre de costas pra mim. Fui escorregando instintivamente o corpo ao redor da coluna gigantesca, mas ao chegar ao meu lado, ela virou-se de repente e me olhou. Apoiou rapidamente os dois braços na coluna prendendo-me. Fiquei petrificada, sentindo os olhos da platéia e o hálito intenso do homem por trás da máscara. E ele disse  numa voz grave: “Parla italiano?”. Espanhol e português, respondi eu em algum idioma que não lembro. Ele fez um gesto de desconsolo com a cabeça e continuou pausadamente: “Tu hai gli occhi triste”, e nos olhos pequenos e penetrantes eu vi que ele se importava com que eu realmente entendesse o que ele tinha dito. Eu entendi, mas não respondi nada. Acho que sorri. Ele insistiu ainda uma vez, arriscando um espanhol atrapalhado. Depois me soltou plasticamente e voltou ao palco. Eu aproveitei pra fugir.
Sentei num banco a vinte metros da cena. Observei um instante e constatei que ninguém me olhava mais, nem tirava mais fotos. Ali naquele banco chorei longamente. Um choro profundo, sentido e desconhecido, de uma tristeza que um estranho detrás de uma máscara tinha revelado. Alguns instantes depois, levantei os olhos e vi, no palco onde tudo tinha começado, que o homem na fantasia de pássaro perguntava algo à sua companheira de cena. Ela nada respondeu, mas levantou lentamente o braço e apontou em minha direção. Ambos me olhavam e eu fugi mais uma vez.
(continua)

06 março 2011

O intruso


É Carnaval. Mas não há nada mais distante de mim neste momento que a imagem de ruas assardinhadas de gente. Tenho em mente, muito pelo contrário, a imagem de uma rua vazia da cidade de Córdoba, ou de Mendoza, na Argentina. São 3, 4 ou 5 horas da manhã, não sei bem, de alguma noite do final dos anos 50 ou início dos 60, também não sei, a memória não é minha. É meu pai quem caminha, voltando com amigos de alguma farra ou baile, por essa rua vazia. Eles vêm rindo e relembrando a memória recente, a festa, os fatos dos quase vinte ou vinte e poucos anos: a memória não é ali, ainda, um assunto candente.
Não há mais bonde a essa hora, carro a mocidade não tinha, caminhar era a única saída. A rua de Mendoza ou de Córdoba é amarelada, como toda rua antiga, como uma rua numa foto velha ou num cartão postal, essa memória é minha. É larga a rua, com poucos carros estacionados. Os amigos se despedem a cada nova esquina, se abraçam ruidosamente enquanto ainda caminham, fazem uma última brincadeira e desviam. Meu pai vai ficando sozinho. Somente ele e, ao longe, um, dois, três cachorros, não sei, uma matilha talvez. De cães vagabundos, noturnos, vadios. Mais ninguém. São poucas as quadras que ele tem de percorrer sozinho. Meu pai lembra bem: uma pedra em cada mão pra afugentar o perigo. Mas não é o ladrão que vem, nem a morte da navalha arrabaldeira que espreita na sombra: são os cães que vêm vindo. Um deles avista meu pai de longe e começa a latir. Os outros logo se juntam e o latido vira um uivo conjunto, um alarde, um aviso. A rua, a noite, é deles, os cães: meu pai é o intruso.
Nesta rua vazia, de que não tenho memória, é dos cães (acredite!), dos vadios vira-latas em bando que meu pai tem medo.