16 junho 2011

A história no instante

Há uma cena inquietante –para mim talvez a mais inquietante de todo o filme– em O Curioso Caso de Benjamin Button: quando ele narra o atropelamento de sua amada, Daisy, como uma sucessão de instantes amarrados entre si como as jogadas em um jogo de xadrez.  Quem nunca viveu isso? Qualquer movimento diferente no meio daquela sequência de eventos teria evitado o acidente e a consequente ruína da carreira de bailarina da personagem. Ontem à noite passei por algo parecido numa rua de Córdoba, no centro da cidade, quando dobrei numa esquina e reconheci um desconhecido. Sim, você também já deve ter passado por isto: aquele instante em que você está certo de conhecer alguém, de já ter visto aquele rosto, sem que nunca antes o tenha visto. Mas o curioso do encontro de ontem foi que aquele homem também me viu, me reconheceu e ficou tão atordoado quanto eu.
Enquanto eu dobrava a esquina, ele, dentro de uma loja, levantava do chão uma caixa. Eu pisava com passo firme na calçada, determinada a chegar em outra loja, dois quarteirões mais adiante, antes de que fechassem. Ele empurrava a porta de vidro com o corpo, as mãos ocupadas carregando a caixa, eu já estava tão perto... Ele atravessou a calçada bem no ponto em que eu pisaria segundos depois, já desconcertada pela troca de olhares, pelo reconhecimento mútuo. Mas isto já seria na segunda troca de olhares. Na primeira e involuntária, antes de cruzar a linha invisível que ele tinha desenhado na calçada, eu tinha apenas levantado o olhar do chão, casualmente, e colocado sobre aquele homem ali parado, já no asfalto, se preparando para colocar a caixa no porta-malas do carro. Homem alto, moreno, do jeito que eu gosto, ator de cinema, acho, mas o que ele faz em Córdoba? E antes de que no instante seguinte eu desviasse outra vez os olhos e os pousasse de novo no chão à minha frente, ele levantou os dele da caixa e colocou-os nos meus. Deixou que permanecessem assim mais tempo do que o faria alguém que não se interessasse por mim ou que não me reconhecesse. Não era ator cordobês, eu não conhecia muitos, nem ator argentino, que conheço mais. Não era alguém famoso que eu reconhecia na rua, mas alguém que eu conhecia sem conhecer ainda. Tirei os olhos dos dele (para onde depois eu voltaria ainda várias vezes), pisei firmemente com o pé esquerdo no chão, depois com o direito e entrei de novo na linha reta da calçada que me levava à loja que em poucos minutos fecharia as portas.
Se alguém tivesse esbarrado em mim na esquina, se o semáforo da rua anterior estivesse aberto e atravessar a rua a pé tivesse me custado mais alguns minutos, talvez ao passar por ali ele já estivesse com a cabeça enfiada no porta-malas do carro. Se a porta de vidro da loja de onde ele saía estivesse com ferrolho ou chave e ele com as mãos ocupadas demorasse um instante em abri-la, talvez eu passasse sem tirar os olhos da calçada. Uma sequência amarrada de eventos para desembocar em um instante. Gosto do cinema, da música, da literatura, do teatro e da dança que se detêm nesses instantes.
Algumas semanas atrás toquei carinhosamente com a mão o rosto de um amigo já depois de despedi-lo com um beijo e um longo abraço. Era para mim o último instante de um longo encontro de muitas horas de conversas e descobertas. Era um souvenir só meu, um toque de peles que eu roubava silenciosamente daquele amigo. Dias depois descobri, que do outro lado do mundo, naquele mesmo instante, na cabeça dele, na pele, no sentimento, aquele carinho tinha se dilatado, aquele gesto curto do dedo deslizando sobre a pele da face tinha sido eterno.
Gosto do cinema, da literatura, da música, da dança, do teatro, da fotografia que tratam não tanto da história  prévia destes instantes, como em O Curioso Caso de Benjamin Button, mas das histórias nestes instantes, de tudo –e não é pouco!– o que acontece ali dentro.