17 junho 2005

Os cachorros estão soltos

É noite. Os cachorros estão soltos lá fora. Ouvimos como circulam pelas quatro margens da casa. Nossa cabeça exausta sobre o travesseiro vai recompondo seus passos, seus atos, sua localização, conferindo se cada flanco está protegido, se os ruídos são conhecidos, avaliando, no fim das contas, se o sono pode vir ou não.
Um lento trabalho de reconhecimento se processa no momento de dormir. As diferentes versões do som do vento nas janelas, pelas frestas, no toldo, nas palhas do coqueiro, devem passar por uma verificação. Como um moderno sistema de segurança a mente escuta e confere com as informações armazenadas numa base de dados. Identifica e descarta. Identifica e descarta o perigo. A rotina dos vizinhos é também catalogada: o ranger do portão, as vozes, a hora de fechar a casa e ir dormir. A mente processa tudo e permite o sono. Procura outra vez pelos cachorros e os localiza apesar do silêncio. Confia. Entrega-se ao sono e confia na vigília dos cães. O sono vem vindo, entorpece a mente, distorce os sons que já não coincidem com os da base de dados e fazem soar um alarme interno que interrompe o sono. De olhos arregalados no escuro a mente procura o ruído invasor e localiza outra vez os cães. O sobressalto se repete ainda uma ou duas vezes a cada noite, mas por enquanto o sono vence.
A violação do sono é talvez o último e pior capítulo da nossa miséria social.

13 junho 2005

Réquiem

Cachorros são melhores que nós, muito melhores. Contra toda teoria científica evolucionista não resta a menor dúvida que cachorros são seres muito mais evoluídos que nós, humanos. Isso, ou algo próximo disso, me disse meu pai há poucos anos quando eu pensava em criar um gato que me fizesse companhia em meu solitário apartamento de São Paulo. Para me convencer a adotar uma gatinha ele me disse que lhe parecia mais justo que humanos tivessem gatos em vez de cães como companhia, já que os felinos - dizia ele - nos são mais semelhantes, mais próximos. Gatos são ranzinzas, individualistas, interesseiros como os humanos. Sabem chantagear quando querem muito alguma coisa e são indiferentes e mesmo rudes se lhes forçamos a algum carinho, se tentamos submetê-los diante de uma carência nossa (enquanto escrevo isso, minha gata que me vê sofrida e chorosa, se aproxima na cama para me fazer companhia e para me dizer, ronronando, que mesmo ela, felina, é muito mais evoluída que nós em termos de afetividade e dedicação).
Cães são inteiramente disponíveis, gatos não. Cães atendem sempre a um chamado, gatos às vezes sim, às vezes não. Cães contentam-se com um afago na cabeça e o frio do chão, gatos sobem mais alto e testam todos os limites para conseguir o que querem. Gatos estão mais próximos dos homens, cães estão a anos luz...
Nesta noite dos namorados, 12 de junho de 2005, perdeu-se em minha casa - por amadorismo da medicina veterinária baiana ou por mera fatalidade - uma cadela que se já nos era tão superior por ser cadela, certamente se destacava também entre os seus. Fosca faleceu de um fulminante ataque do coração. Que ironia esta morte do coração no dia dos namorados, desta que foi a criatura mais enamorada pela vida e por cada membro de nossa família, e por sua filha, Luna, única lembrança viva que nos ficará dela, frágil e doce como o foi desde que nasceu.
Fosca era forte e apaixonada. Olhava-nos com paixão e com malícia, era irresistível. Era brava e um pouco louca - achávamos -, mas sempre nos defendeu com veemência. Era uma alegria na casa, uma presença especialíssima e era - toda negra - uma luz constante em nossas vidas.
Apagou-se. E na sombra que ela deixou os monstros da nossa mortalidade, da nossa fragilidade, ressurgem. As portas, os portões, as nossas noites e o nosso sono parecerão sempre mais frágeis, mais vulneráveis, menos protegidos.