É noite. Os cachorros estão soltos lá fora. Ouvimos como circulam pelas quatro margens da casa. Nossa cabeça exausta sobre o travesseiro vai recompondo seus passos, seus atos, sua localização, conferindo se cada flanco está protegido, se os ruídos são conhecidos, avaliando, no fim das contas, se o sono pode vir ou não.
Um lento trabalho de reconhecimento se processa no momento de dormir. As diferentes versões do som do vento nas janelas, pelas frestas, no toldo, nas palhas do coqueiro, devem passar por uma verificação. Como um moderno sistema de segurança a mente escuta e confere com as informações armazenadas numa base de dados. Identifica e descarta. Identifica e descarta o perigo. A rotina dos vizinhos é também catalogada: o ranger do portão, as vozes, a hora de fechar a casa e ir dormir. A mente processa tudo e permite o sono. Procura outra vez pelos cachorros e os localiza apesar do silêncio. Confia. Entrega-se ao sono e confia na vigília dos cães. O sono vem vindo, entorpece a mente, distorce os sons que já não coincidem com os da base de dados e fazem soar um alarme interno que interrompe o sono. De olhos arregalados no escuro a mente procura o ruído invasor e localiza outra vez os cães. O sobressalto se repete ainda uma ou duas vezes a cada noite, mas por enquanto o sono vence.
A violação do sono é talvez o último e pior capítulo da nossa miséria social.